Por causa das restrições de sociabilidade presencial advindas da necessidade de conter a pandemia provocada pelo CoronaVírus, diversos festivais de cinema foram cancelados ou adiados em 2020. A fim de compensar a brecha deixada por estas relevantes plataformas de lançamentos cinematográficos alternativos, as curadorias de alguns destes festivais uniram-se numa iniciativa virtual bastante oportuna. Dessa maneira, foi criado o We Are One: a Global Film Festival, canal provisório no portal eletrônico YouTube que disponibilizou um cabedal volumoso de filmes ainda não distribuídos comercialmente.
Dentre os festivais que disponibilizaram parte do acervo de suas respectivas programações, o que mais se destacou pela qualidade foi o IFFR – International Film Festival Rotterdam [Festival Internacional de Cinema de Roterdã]. No catálogo virtual, lançamentos benfazejos advindos da África. Produções realizadas nas mais diferentes durações merecem destaque, como o curto documentário queniano “Tapi!” (2020, de Jim Chuchu) e o média-metragem cabo-verdiano “Kmêdeus” (2020, de Nuno Miranda). Além daquele que talvez tenha sido o melhor filme de todo o festival virtual: o recentíssimo longa-metragem angolano “Ar Condicionado” (2020).
Dirigido pelo jovem realizador Fradique, co-fundador da imponente produtora Geração 80, este filme consegue a proeza de adequar elementos dos gêneros musical e ficção científica à realidade cotidiana de Luanda, capital de Angola. O estilo do roteiro possui o elã fantástico das narrativas caras a escritores como José Saramago e Mia Couto, mas sob uma perspectiva assaz pessoal, dotada de uma amargura inequívoca, visto que o país é marcado por duradouras guerras civis, sendo que a última delas estendeu-se oficialmente de 1975 até 2002, mas ainda deixa máculas profundas no dia a dia dos habitantes.
O enredo de “Ar Condicionado” é, no mínimo, inusitado: ainda na abertura, sabemos, através de uma transmissão radiofônica, que todos os aparelhos de ar-condicionado da cidade de Luanda pararam de funcionar misteriosamente. Para piorar, os aparelhos caem subitamente, às vezes matando transeuntes, em razão do baque. O calor excessivo asfixia os moradores, ao passo em que grupos anarquistas reivindicam um discurso contra a desnecessidade destes aparelhos, que, ao desconsiderarem os apanágios climáticos do país, obedecem a determinações estrangeiras e coloniais…
O protagonista do filme, o segurança Matacedo (José Kiteculo), conversa constantemente com sua amiga Zezinha (Filomena Manuel), empregada de um rude empresário, ainda mais encolerizado por aguardar o conserto de seu ar-condicionado, que, como os demais no país, também parou de funcionar. Zezinha foi criada numa ilha, onde seu pai era pescador e, antes de ser fatalmente tolhido pela senilidade, inculcou-lhe que “o vento é a coisa mais importante que existe”. Esta frase aparentemente trivial tem a ver com as três definições em separado que antecedem os créditos iniciais: ao apresentar dicionaristicamente os múltiplos significados possíveis para “ar” e “condicionado” – em detrimento de apenas um para o vocábulo composto “ar-condicionado” – o diretor e co-roteirista Fradique deixa evidente o seu forte pendor político nesta narrativa distópica conduzida realisticamente.
A conversa entre Matacedo e Zezinha é interrompida pelas ligações insistentes do patrão desta última, que exige que o primeiro restitua o aparelho então em reparos. Ocorre que, ao visitar o mecânico responsável pelo conserto, o excêntrico Kota Mino (David Caracol), Matacedo descobre que os aparelhos de ar-condicionado, em verdade, possuem um mecanismo que subtrai a memória dos angolanos. No afã por blindar o efeito amnésico provocado por estes aparelhos, Kota Mino sugere que Matacedo e Zezinha sirvam-se de sementes secas como antídotos tradicionais. Mas as obrigações proletárias de ambos mergulham-nos na celeridade característica da opressão classista: eles precisam voltar ao prédio onde trabalham, carregando o pesado aparelho, o que provoca uma briga entre dois carregadores de rua. Ao redor deles, mais aparelhos desabam. Pessoas morrem e choram… O esquecimento do passado anula também as promessas coletivas de futuro!
No interior de um automóvel improvisado que Kota Mino utiliza como resguardador de memórias, Matacedo sonha – e, assim, a bela voz de Aline Frazão, autora da trilha musical do filme, insurge-se de forma inebriante e militante, ao mesmo tempo. Em seu cariz de típico fado africano, a letra da canção traz à tona a importância de lembrar, de servir-se dos acontecimentos históricos como instrumentos de resistência no presente. E é neste ponto que Matacedo e Zezinha demonstrarão comportamentos radicalmente distintos: ela é pragmática, parece ter cedido ao ritmo cooptado da contemporaneidade; ele é bem mais velho, possui feridas de guerra ainda não cicatrizadas em seu âmago. Enquanto um preocupa-se com a possibilidade de não morrer deitado, a outra prioriza a diligência de arranjar quem carregue o seu caixão, quando o derradeiro instante inevitavelmente acontecer…
Ao longo dos 72 minutos de duração deste ótimo filme, Matacedo percorre lugares depauperados, prédios com aspecto arruinado, em que os aparelhos que desabam a todo instante parecem irrelevantes, não atrapalhando sequer o jogo de futebol que crianças improvisam num vão do edifício. O diretor comenta que serviu-se dos cenários reais onde crescera, o que acentua o teor inconformista da obra, cujo contínuo vagar do protagonista chega a emular os filmes elogiadíssimos do húngaro Béla Tarr. “Ar Condicionado” é, portanto, um dos melhores e mais importantes lançamentos cinematográficos do ano. Obrigatório em seu ímpeto de ressignificação pós-quarentenária!