Dentre os filmes brasileiros que superaram a difícil cifra de meio milhão de espectadores em 1978, o longa-metragem em episódios “Pintando o Sexo” (1977, de Egydio Eccio & Jairo Carlos) aparece entre eles. Trata-se de um filme moralmente ignóbil e associado aos piores aspectos do que hoje entendemos como “machismo estrutural”. O próprio título do filme, com uma menção oportunista ao erotismo, surge como falso problema, no sentido de que a sexualidade, se devidamente exercida e/ou liberada, poderia estimular um proveitoso debate político, no que tange à prerrogativa de interação benfazeja entre os indivíduos. O enredo, entretanto, faz piada com estupros, assédios, abusos e enganações. Conforme era frequente durante o período ditatorial, aliás.
Dado que nunca é desnecessário enfatizar o quão terrível foi este período da História do Brasil, reiteramos que, entre 1964 e 1985, o país sofreu um golpe militar e, em decorrência disso, a vida privada e as manifestações culturais dos cidadãos foram atravessadas por inúmeras proibições, que atingiram o seu ápice na instituição de um Departamento de Censura: músicas, livros e filmes eram sujeitos à avaliação prévia de censores, que determinavam se estas obras podiam ser liberadas para o público. As menções ao “fantasma do comunismo” eram dominantes, enquanto algo a ser imediatamente extirpado, mas a eliminação de situações que pudessem ofender o decoro dos “homens e mulheres de bem” era também estimulada. Por que, então, foram produzidos tantos filmes de cunho erótico, fazendo com que, até hoje, muitas pessoas afirmem que “no cinema brasileiro, só tem sacanagem”?
As respostas são variegadas, mas há uma hipótese que se destaca: desde que os filmes em pauta especifiquem um “inimigo” facilmente identificável — e devidamente punido nas tramas —, a licenciosidade é provisoriamente permitida. Até porque, os moralistas hipócritas logo perceberam que isso era também sobremaneira rentável. E foi assim que surgiu uma pletora de filmes abundantes em cenas de nudez feminina, em que os homossexuais, as libertinas e os maridos traídos eram ridicularizados. Fingindo-se proibir, era atiçado o estímulo dos espectadores, que enchiam os cinemas, entusiasmados pela possibilidade de verem seios, nádegas e adúlteras sendo escorraçadas. Eis do que tratavam as pornochanchadas — entendidas etimologicamente como comédias eróticas, a despeito da pecha generalizada, que foi indevidamente atribuída, para filmes de outros gêneros, por parte de uma imprensa tão preconceituosa quanto elitizada.
Enquanto deixa para um debate posterior, acrescentamos aqui que, comparando-se as produções realizadas pela Boca do Lixo paulistana e aquelas especificamente cariocas, podemos notar uma diferença considerável de abordagem, sendo que, no primeiro caso, identificamos perspectivas autorais e até mesmo lampejos de empoderamento quanto às categorias ridicularizadas, nos exemplos anteriores. Mas é sobre um filme carioca que passaremos a falar agora: o supracitado “Pintando o Sexo”, que, tal qual dissemos, é composto por três episódios. Nos dois últimos [“Conchetta” e um que leva o mesmo título do filme], as protagonistas são esposas: uma delas é uma viúva italiana, dona de pensão, que se mantém fiel ao marido, após três anos de seu falecimento. Cansada de tanto “tocar viola” (gíria para masturbação feminina), ela cogita entregar-se a um funileiro que a assedia; a outra é a cônjuge de um Cornélio (um dos nomes mais recorrentes nestes filmes), que, sendo negligenciada por muito tempo em relação à sua vontade de transar, cogita a possibilidade de fazer sexo com um vizinho pintor. São os entrechos menos piores!
O grande problema deste filme está em seu episódio inicial, ‘O Lobo Mau, a Vovó e a Netinha”, protagonizado pelo humorista Older Cazarré [1935–1992], que interpreta Nestor, um funcionário de idade avançada que, na primeira sequência, aparece alisando o traseiro de sua secretária, enquanto dita-lhe um telegrama. Ao chegar em casa, sua esposa diz-lhe que eles têm uma nova vizinha, e esta pede que ele a ajude a pendurar um quadro, que ficou mal-posto durante a mudança. A velhinha informa que deixou a porta entreaberta e, quando Nestor chega ao seu apartamento, descobre a neta dela dormindo de bruços, com a calcinha à mostra. Insaciável, e apresentado como alter-ego do público machista, Nestor olha para a câmera e dispara: “eu preciso tocar nela!”. O faz, infelizmente — e, por mais que haja uma reviravolta traumática que, de algum modo, o responsabiliza (enviesadamente) pela situação abusiva, surge um questionamento: o problema desta sinopse é efetivamente o erotismo? Voltaremos ao assunto, em oportunidades vindouras, ao passo em que, nem que seja enquanto demonstração contra-exemplar, recomendamos a audiência a estes filmes…
Wesley Pereira de Castro.