No dia 21 de setembro de 2021, dia da Árvore no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro discursou na abertura da septuagésima sexta Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas. A fala do referido governante foi tão ignóbil que, por respeito aos nossos leitores e a fim de não configurar mais publicidade gratuita para o genocida em pauta, evitaremos citações explícitas. Mas foi um discurso claramente permeado por mentiras, devidamente identificada por espectadores dos mais diversos países…
Se, por um lado, ignorar o conteúdo desse discurso pode ser perigoso – em termos defensivos, no sentido de que é preciso sempre estar atento para combater o fascismo – por outro, de que adianta reiterar o que já era sabido de antemão como amplamente reprovável? Temos aí um dos vários dilemas caros ao Jornalismo diuturno.
Passados quase dois anos desde que surgiram os primeiros casos do CoronaVírus na China, a população mundial está saturada de enumerar mortos, de lidar com as irresponsabilidades administrativas de seus representantes políticos, de estar confinada. E, como tal, as aberturas benfazejas de reconstituição social através da educação e da arte são extremamente urgentes – e possíveis. Ao final desse artigo, falaremos sobre a noticiabilidade de uma delas. Por ora, é necessário recomendar um longa-metragem brasileiro contemporâneo, sobremaneira oportuno: “A Nuvem Rosa” (2021, de Iuli Gerbase).
Logo no início, uma cartela advertente: “este filme foi escrito em 2017 e filmado em 2019. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência”. E as semelhanças são muitas! Na trama, a constatação de que uma nuvem rosada aparece – simultânea e repentinamente em todo o planeta – e provoca a morte de quem ingere o gás expelido por ela, em poucos segundos. Os telejornais recomendam que as pessoas fechem as portas e janelas e fiquem confinadas em suas residências. De maneira ainda mais extrema do que foi sugerido, à guisa de quarentena para evitar a contaminação pela COVID-19: “fiquem em casa”, eis a determinação incontornável!
O roteiro acompanha a progressão do relacionamento entre Yago (Eduardo Mendonça) e Giovana (Renata de Lélis). Eles havia acabado de se conhecer, numa festa, e foram obrigados a permanecer vários anos juntos, depois que foi decretado o estado de sítio internacional. Ele trabalha como quiropraxista, e fica preocupado: “como poderei ganhar dinheiro, se não posso tocar nas pessoas?”. Ela, por sua vez, é ‘designer’ de sítios eletrônicos, e consegue bastante trabalho enquanto os profissionais de diversas áreas estão presos em casa. O encontro inicialmente casual converte-se num casamento duradouro e entremeado por constantes brigas…
De maneira profética, o filme antecipa as crises relacionais que tomaram de assalto o cotidiano das pessoas, quando tiveram as suas vidas sociais presencialmente impedidas, por causa de uma doença misteriosa e absolutamente letal: Yago preocupa-se com o pai idoso, que é cuidado por um enfermeiro; Giovana possui uma irmã mais nova, que, no momento em que a nuvem surge, estava numa festa na casa de uma amiguinha. As responsabilidades familiares são centrais no roteiro, sobretudo quando Yago insiste que deseja ter um filho. A contragosto, Giovana cede. O que se segue é a passagem do tempo, permeada pela convivência forçada.
A despeito de o filme servir como uma reflexão muito pertinente acerca de nossos comportamentos pessoais durante o confinamento, ele também revela uma série de preconceitos classistas, não necessariamente voluntários: por mais que preocupe-se com os moradores de rua, por exemplo, as atenções afetivas de Giovana são direcionadas às poucas pessoas com quem ela interage digitalmente. E este é apenas um dos variegados elementos inverossímeis da narrativa, visto que Internet, eletricidade, fornecimento de água encanada e outros serviços similares continuam a funcionar normalmente, mesmo que não haja sequer um tipo de máscara que permita que as pessoas saiam às ruas sem serem mortas pelo gás proveniente da nuvem titular… Como os funcionários destas empresas trabalham?!
Estes problemas de verossimilhança não seriam determinantes se a trama não conferisse tanta importância a tubos implantados pelo Governo Federal nas janelas das residências, por onde são enviados mantimentos e realizadas transações comerciais privadas. Afinal, esta complexa engrenagem obrigaria o roteiro a posicionar-se de maneira mais contundente quanto às medidas intervencionistas numa situação similar, e prefere centrar-se nas discussões recorrentes entre marido e mulher, ambos caprichosos e inevitavelmente agressivos. O que piora ainda mais quando o filho deles nasce, e sua convivência num “mundo em que já havia a nuvem” passa a reproduzir, com o auxílio de computadores e afins, os mesmos privilégios de classe de antes desta situação inaudita. Mas o recado segue pertinente: é um filme que merece ser visto e discutido!
Voltando às questões noticiosas, do dito “mundo real”: em 19 de setembro deste mesmo ano, foi comemorado o centenário de nascimento do educador Paulo Freire [1921-1997]. No desfecho de sua obra máxima, o livro “Pedagogia do Oprimido”, publicado inicialmente em 1974, o autor conclama: “se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar”. É nosso anseio também!
Wesley Pereira de Castro.