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“Eu estava ocupado, imaginando como sufocaria todo mundo naquela sala”: daquilo que toleramos, politicamente…

“Eu estava ocupado, imaginando como sufocaria todo mundo naquela sala”: daquilo que toleramos, politicamente…

O que leva um candidato eleitoral a imaginar que uma carreata barulhenta, num dia reservado ao descanso, poderia angariar votos em seu favor? Que isto seja levado a cabo por políticos demagogos, acostumados à imposição de suas vontades sobre as liberdades de outrem, mediante falso convencimento massivo, é algo a ser lamentado. Mas que isso seja também efetivado por políticos progressistas atinge um viés sobremaneira preocupante: chegou-se a um momento em que as diferenças comportamentais entre opositores ideológicos são obliteradas pelo nivelamento procedimental: na guerra pela atenção dos votantes, tudo vale? Já que, em âmbito democrático, somos obrigados a escolher pela opção “menos pior” entre aquelas disponíveis, a malevolência instala-se em nosso cotidiano como um efeito colateral “incontornável”, de modo que somos orientados a fingir que ela não está lá…

É neste sentido que um filme como “Zona de Interesse” (2023, de Jonathan Glazer) revela-se tão contundente. Vencedor do Grande Prêmio no Festival de Cannes, em 2023, além de uma láurea pela perturbadora trilha musical de Mica Levi, este longa-metragem também foi exitoso em duas categorias no Oscar 2024: Melhor Filme Internacional e Melhor Som. Ao vencer nesta segunda categoria, os aplausos e gritos foram estrondosos no auditório: era o grande merecedor, sem dúvidas. Porém, não soa um tanto incoerente celebrar, de maneira entusiástica, aquilo que, na tela, nos sufoca? “É apenas um filme!”, eis o tipo de discurso que esse tipo de competição artística deixa evidente. O que fica enquanto mensagem, depois que constatamos que a mais potente das obras cinematográficas pode ser reduzida a um mero produto da Indústria Cultural, como qualquer outro?

“Zona de Interesse” é um filme atravessado por diversos paradoxos e contradições. A recepção crítica a ele foi bastante dividida, aliás: muitos apressaram-se em celebrar a produção como genial, por conta dos experimentalismos de seu diretor, que não mostra o Campo de Concentração de Auschwitz e, ao invés disso, faz com que percebamos o que acontece ali através de ruídos onipresentes e atemorizantes; houve quem tachasse o filme de ignóbil e manipulador pelos mesmos motivos, alegando que o realizador se serviu de um pretexto atroz para exibir o seu virtuosismo técnico. E há quem considere que ambas as categorias não são necessariamente excludentes: o filme pode ser genial e manipulador ao mesmo tempo, não obstante, mais uma vez, esbarrarmos em ponderações éticas sobre o que (não) é mostrado: afinal, há, sim, uma espetacularização do sofrimento das pessoas mortas, visto que nos esforçamos para ouvir o que acontece por detrás dos muros que cercam os ambientes onde se desenrola a tediosa ação familiar.

Em tese, não há bem uma trama neste filme, mas sim o deslindamento de uma situação: o comandante nazista Rudolf Höss (Christian Friedel) vive com sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) numa enorme residência, em Auschwitz, na Polônia, durante a II Guerra Mundial. Ele trabalha o dia inteiro, selecionando judeus saudáveis, a fim de submetê-los a trabalhos forçados no campo de concentração, enquanto ela cuida dos cinco filhos e recebe presentes (casacos de pele, joias, etc.) roubados dos judeus aprisionados. Em determinado momento, Rudolf recebe a notícia de que será transferido para outra cidade, mas ela deseja permanecer onde está, pois adora ser chamada de “rainha de Auschwitz”. Dentro da casa, comida farta, rosas perfeitas e camas separadas para o casal; do lado de fora, gritos, fome, maus tratos, morte e pessoas carbonizadas. O som dos latidos de cães ferozes e tiros disparados contra pessoas desarmadas é perene!

Adaptado livremente do romance homônimo escrito por Martin Amis [1949–2023], que faleceu poucos dias antes de o filme estrear no Festival de Cannes, “Zona de Interesse” não aproveita a estrutura tripartite do livro, que se divide entre os relatos patrióticos de um soldado apaixonado pela esposa de seu comandante; os cálculos numéricos deste último, sufocado pelas contínuas exigências burocráticas do extermínio de pessoas; e o desespero progressivo de Szmul, um ‘sonderkommando’ que amaldiçoa diariamente a sua sujeição à mais desprezível das funções: conduzir seus companheiros de religião para o sufocamento nas câmaras de gás. Os segmentos capitulares narrados por Szmul são mui reduzidos, em relação aos demais, mas impressionam pela pujança e pela desolação. Em dado momento, ele diz: “não tenho mais medo da morte, embora ainda tenha medo do processo da morte. Tenho medo de morrer porque vai doer. Isso é tudo o que me prende à vida: o fato de que deixá-la vai doer. Causará dor”! Trata-se de um livro inclemente, que só não é uma obra-prima porque não há como terminar uma história como essa. O filme, entretanto, é mais incisivo neste requisito: o desfecho obriga-nos a reagir acerca de um genocídio travado no presente. Em seu discurso de agradecimento, no Oscar, o diretor Jonathan Glazer afirmou que, na atualidade, tanto israelenses quanto palestinos são submetidos à mesma desumanização exposta em sua obra, o que causou forte polêmica entre os profissionais cinematográficos de origem judia, que assinaram um documento em repúdio. Ele não tem razão? Votar em quem, depois disso?

Wesley Pereira de Castro.

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Uma resposta

  1. Abordagem cativante que ampliou minha experiência com a obra, a qual gostei bastante.
    Que venham mais textos tão esclarecedores. ????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????

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