Na noite de 25 de março de 2022, uma sexta-feira, os telejornais brasileiros foram unânimes ao noticiar o sucesso da funkeira carioca Anitta (nome artístico de Larissa de Macedo Machado), que, com a canção “Envolver”, tornou-se a mais ouvida em todo o mundo, na plataforma Spotify. Para além das críticas que são direcionadas aos apanágios musicais da cantora, este recorde merece ser comemorado, visto que foi a primeira vez que uma artista latino-americana conseguiu este feito. Sem desmerecer a celebração de tal ineditismo, há uma série de questões por trás da conversão deste fato em notícia…
Em primeiro lugar, convém destacar que o Spotify é uma plataforma musical de caráter privado – ainda que de acesso bastante popular –, não sendo um meio de comunicação de massa de acesso geral; em segundo, ele existe há pouco tempo (desde 07 de outubro de 2008, para ser preciso), de modo que os seus recordes são inequivocamente recentes; e, terceiro, a quem interessa esta notícia? Repete-se: sem desmerecer a cantora – que surpreende-nos diuturnamente por causa de sua persistente cruzada antibolsonarista –, isso demonstra quão influenciado pelas ditas “redes sociais” é o jornalismo contemporâneo, não sendo raros que suas pautas advenham dos assuntos mais comentados no Twitter.
Aproveitando esta deixa reflexiva, convém trazermos à tona um documentário consagrado pela maneira provocativa com que ele foi difundido: fingindo ser uma realização norte-coreana contrabandeada internacionalmente, “Propaganda” (2012, de Slavko Martinov) serve-se de vasto material de arquivo para expor as limitações democrático-midiáticas ocidentais, a partir de uma crítica incisiva ao modelo imperialista de dominação cultural estadunidense. A fim de hipertrofiar o seu charme denuncista, não há créditos internos, de maneira que o mito da difusão clandestina da produção é reiterado…
Ao longo de seus noventa e seis minutos de duração, as inevitáveis contradições de qualquer discurso ideológico ficam evidentes. E, convenhamos, era óbvio que este filme não teria sido produzido sob a égide do rigoroso regime da Coréia do Norte, por mais que alguns estratagemas chistosos estejam em evidência, como a opção de censurar o nome do Doutor em Psicologia (interpretado pelo ator sul-coreano Eugene Chang) que narra a suposta versão original do documentário (alegadamente redublado em inglês para as platéias globalizadas, segundo a sua esperta lógica distributiva).
Numa montagem mui perspicaz, que aproveita-se de imagens de noticiários e trechos de obras cinematográficas, peças publicitárias e programas televisivos, ouvimos a narradora (cuja voz sobrepõe-se à narração em coreano) explicar como a Império Britânico arregimentou o seu domínio ao redor do mundo, como a Bíblia serve aos interesses propagandísticos mundiais, como a indústria da moda e dos cosméticos financiam a “pedofilia corporativa” e como algumas celebridades (Angelina Jolie e Madonna, entre elas) praticam impunemente a “compra de crianças no Terceiro Mundo”. Não obstante a extrema seriedade do tema, um senso de humor apurado é subjacente, como quando o cantor Michael Jackson [1958-2009] é tachado de “pobre rapaz” ou quando Elvis Presley [1935-1977] recebe uma medalha de “combate às drogas” de um ex-presidente norte-americano, quando ele próprio em viciado em substâncias farmacológicas!
Um trecho muito duradouro é dedicado às práticas abusivas do governo israelense, que, segundo a narração, utiliza-se da produção contínua de filmes sobre o Holocausto e os campos de concentração para comover as audiências, ao passo em que repete o tipo de opressão cometido pelos nazistas, tomando à força as terras palestinas. As menções ao extermínio dos aborígenes na Austrália são também priorizadas no filme.
Paralelamente à narração, lemos na tela citações de personalidades variegadas, desde autores consagrados como Noam Chomsky até políticos ignóbeis como George W. Bush, sendo que duas destas citações merecem ser transcritas nesse texto: quando o filósofo estóico Sêneca [4 a.C.- 65] afirma que “a religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos inteligentes como falsa e pelos governantes como útil”; e quando o escritor George Orwell [1903-1950] atesta que “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”.
Na parte final do documentário, o narrador tenta emular o patriotismo norte-coreano, a fim de manter o fingimento produtivo, quando, em verdade, o diretor é neozelandês e com franco acesso ao material que seria indisponível no território comandado por “nosso amado líder” Kim Jong-Il [1941-2011]. E o roteiro é muito hábil na distinção entre os termos ‘propaganda ‘ e ‘publicidade’. Segundo uma diferenciação válida do teórico brasileiro César Bolaño, a propaganda serve para propagar idéias e conceitos, enquanto a publicidade tem âmbito predominantemente comercial. Nas palavras do autor, “a publicidade não apenas se confunde com a propaganda, mas sobrepõe-se a ela, constituindo, por meio da ‘cultura integracionista’ dos meios de comunicação de massa, uma alternativa, um ‘equivalente funcional da formação das ideologias’ nas sociedades tardo-capitalistas, para as quais vale a idéia da ‘pacificação do conflito de classes’”. Tal reflexão de caráter habermasiano encontra-se no excerto dedicado à “mudança estrutural da esfera pública e a contradição publicidade-propaganda”, encontrado no segundo capítulo do livro “Indústria Cultural, Informação e Capitalismo”, publicado no ano 2000.
No início do filme, o narrador fala que a intenção deste documentário é permitir que os espectadores, a partir do que é mostrado, possa “pensar com as suas próprias idéias”, o que é interditado em essência. Conforme é dito em determinado instante, acerca do sistema bipartidário dos Estados Unidos da América, quando alguém opta por votar em candidatos republicanos ou democratas, ele está, em verdade, votando no partido “demo-republicano”. Ou seja, nas democracias cooptadas pelo Capitalismo, as escolhas são igualmente predeterminadas, malgrado as opções disponíveis parecerem opostas.
Por motivos óbvios, há uma seção do documentário dedicada aos ‘reality shows’, bastante populares hoje em dia, em que as pessoas “tornam-se celebridades ao não fazerem nada”. Essa é uma tendência contemporânea que parece irrevogável, de modo que os participantes destes programas televisivos passam a ter seus cotidianos sobremaneira acompanhados, até mesmo pelos telejornais. O produto fílmico “Propaganda” – é quase pleonástico dizer – assume-se, ele próprio, como um filme de propaganda, de maneira ostensivamente metalingüística. Cabe a nós seguir filtrando o que é digno de ser comentado e debatido, não adotando um ilusório patamar de superioridade gnoseológica, mas através de um padrão de coerência em relação ao que defendemos politicamente. Restam-nos como ferramentas o diálogo e a importância afirmativa do dissenso!
Wesley Pereira de Castro.
(Imagem de capa editada por Diogo Goes, a partir das imagens em domínio público de Hands off my tags! Michael Gaida por Pixabay e de Gordon Johnson por Pixaba)