Em 2014, a cineasta alagoana Nara Normande e o realizador pernambucano Tião realizaram um curta-metragem extraordinário, chamado “Sem Coração”, no qual um garoto de classe média, em férias numa praia paradisíaca, conhece uma garota apelidada daquela maneira, que se dispõe a ter experiências sexuais com os meninos que a ofendem diariamente. Nove anos depois, os diretores expandiram essa trama, acrescentando novos personagens e contando com a eloquente presença de Eduarda Samara como a personagem-título, mais uma vez. Por motivos óbvios, ela deixou de ser adolescente, o que redimensiona aquilo que, para alguns espectadores, era muito incômodo, em sua sinceridade: a descoberta e a partilha do prazer. Os motivos para (re)ver o filme, entretanto, são variegados!
Magistralmente fotografado por Evgenia Alexandrova, “Sem Coração” — a versão em longa-metragem de 2023 — possui outra protagonista, Tamara, interpretada por Maya De Vicq. No roteiro, ficam ainda mais evidentes as reminiscências nostálgicas da co-diretora, que já haviam dado origem a outro excelente curta-metragem, “Guaxuma” (2018), dirigido unicamente por ela. Neste novo filme, a mencionada protagonista está prestes a mudar-se de cidade: vai para Brasília, “uma cidade chatíssima”, como diz uma amiga de sua mãe. Aproveitando os derradeiros dias naquela região praiana, Tamara passa os dias e tardes com um grupo de amigos, enquanto dedica as noites à sua mãe, Fátima (Maeve Jinkings), que compartilha consigo o gosto por boa música. O instante em que ambas ouvem um disco de Maria Bethânia — mais precisamente, a faixa “Iansã” — é belíssimo!
A trama é desenrolada no ano em que foi assassinado PC Farias [1945–1996], assessor do ex-presidente corrupto Fernando Collor de Mello, cuja morte, declarada como “crime passional”, não disfarçou o caráter de queima de arquivo. Os moradores da zona onde os personagens moram assistem à notícia do crime pela TV, depois de ouvirem tiros, mas Tamara e seus amigos passeiam pelos locais onde os ricos praticavam as suas orgias: encontram armas, VHS pornográficos e demonstrações de que os visitantes com alto poder aquisitivo são obcecados por aquilo que, em seus discursos hipócritas, fingem condenar. Vide o instante em que um casal, cuja residência foi invadida pelos garotos, reclama, de maneira constrangida, sentir cheiro de maconha quando passa o final de semana em sua casa de veraneio…
Ao perceber que seus amigos gritam o nome de Sem Coração (na verdade, Duda, conforme ela descobrirá posteriormente) com escárnio, Tamara sente o anseio de aproximar-se dela, tentar entender a sua solidão. Felizmente, o filme também opta por isso, de modo que as melhores sequências são aquelas em que ela aparece, conversando com o pai, pescando entre as arraias, interagindo oniricamente com uma baleia, que depois encalha na praia e morre. Tamara apaixona-se por ela, enquanto seus amigos enfrentam dramas paralelos: o rebelde Galego (Alaylson Emanuel), por exemplo, lida com os preconceitos sociais concernentes ao fato de que ele estivera preso num reformatório juvenil, enquanto o meigo Binho (Kaíque Brito) esforça-se para encontrar oportunidades de exercer o seu direito à homossexualidade. O desfecho possui algo de dispersivo, tal qual acontece com nossas memórias distantes, ainda que marcantes. É um filme bonito, mas cercado pela feiúra dos endinheirados!
É por conta disso que a audiência a este filme assume um cariz político, hoje em dia: numa conjuntura em que, no Brasil, discute-se uma absurda Proposta de Emenda Constitucional que, em linhas gerais, defende a privatização das praias — ou, segundo o texto do documento, “as áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos (…) passam ao domínio pleno dos foreiros e dos ocupantes regularmente inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União” —, este filme expõe, em suas entrelinhas denuncistas, o quão dizimadora é a presença dos endinheirados. Tamara e seus amigos brincam em ambientes abandonados, destroçados e permeados por uma violência que eles tentam ignorar, em meio às masturbações comunais. O desfecho diz muito sobre a época em que estamos vivendo. Restarão as lembranças, ao menos?
Wesley Pereira de Castro.
Uma resposta
Desejo muito sucesso para você! Siga sempre em frente e não pare por nada! Você é maravilhoso! ❤️