O que as notícias no Brasil sobre os conflitos dentro das nações que compõem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) revelam sobre a visão brasileira dessa mesma comunidade? Para responder essa e outras perguntas investigamos os poucos registros em todos 20 primeiros anos da CPLP nos jornais O Globo e a Folha de S.Paulo, o que resultou em uma tese de doutorado defendida e aprovada em dezembro de 2017 na UFMG.
Em duas décadas da CPLP ocorreram conflitos armados nos países dessa comunidade, a exemplo de golpes de Estado na Guiné-Bissau e em São Tomé de Príncipe, e na luta do Timor-Leste pela libertação do domínio da Indonésia. Há ainda registros de sequestro do primeiro-ministro da Guiné-Bissau e do assassinato de Nino Vieira, então presidente daquele país.
No Brasil, também no período de nossa investigação (1996-2016), houve um golpe em agosto de 2016 que derrubou a presidenta Dilma Rousseff. Essa ação, no entanto, diferenciou-se dos demais países da CPLP em razão de o golpe ter sido fruto de um grande acordo jurídico-parlamentar, sem a utilização ostensiva, nas ruas, das forças armadas. Sobre esse acontecimento em 2016 no Brasil, a CPLP não se manifestou, assim, não existe registro dele em O Globo e nem na Folha de S.Paulo que o relacionasse à comunidade lusófona.
Quanto às notícias sobre os conflitos armados nos demais países da CPLP, esses dois jornais buscaram revelar uma narrativa detalhada, no sentido de explicar onde fica o país, quem são os políticos e militares envolvidos, ou seja, há uma espécie de guia para que os leitores possam identificar o lugar do perigo. Vale destacar que, nessas notícias de conflito na CPLP, são reforçadas e ampliadas as “qualificações” empregadas nos outros registros sobre África: países pobres, doenças, corrupção, tráfico de drogas, ditadura. Curiosamente, aqui aparecem referências tanto ao Brasil quanto a CPLP.
Vejamos alguns exemplos. Em 1980, na Guiné-Bissau, Nino Vieira, aliado a Ansumane Mané, chefe das forças armadas, toma o poder central em um golpe de Estado. Em 1998, o presidente Nino Vieira demitiu Ansumane Mané do cargo de chefe das forças armadas, acusando-o de tráfico de armas e drogas, e de contrabando. A demissão de Mané fez estourar outro um conflito no país, que foi coberto em O Globo em 17 de junho de 1998, e no jornal Folha de S.Paulo dois dias depois.
Nos dois jornais o destaque é para o fato de a Guiné-Bissau ser “um dos países mais pobres do mundo”, de estar envolvido em crimes de “tráfico de armas e drogas, de corrupção”, e de fazer parte, “junto com o Brasil”, da mesma comunidade dos países de língua portuguesa. Em outras palavras, o Brasil está em uma comunidade – e nesse momento ela é visível –, em que um dos seus membros, a Guiné-Bissau, na África, é nomeado pelo jornal como um “narco-Estado”. O Globo (17/06/1998, p. 30) informa que a marinha portuguesa tinha retirado 70 brasileiros da Guiné-Bissau, que a embaixada do Brasil estava fechada e o embaixador brasileiro desaparecido.
Na Folha de S.Paulo (19/06/1998, p. 15), além de se destacar que o Brasil faz parte da mesma comunidade que a Guiné-Bissau – a CPLP –, também se recorre a um rastro histórico e identitário para informar que aquele país é uma ex-colônia portuguesa com amplas relações com a Bahia, no Brasil. “‘Em Salvador me sinto em casa’, diz guineense” (Folha, 19/06/1998, p.15).
Depois de uma longa ausência de notícias sobre os conflitos na Guiné-Bissau e a CPLP na Folha de S.Paulo e em O Globo, esse país volta ao noticiário dos dois jornais em 03 de março de 2009, em razão do assassinato do presidente Nino Vieira, que segundo os dois periódicos, foi atribuído a um grupo de militares que teriam vingado uma tentativa de morte contra o ex-comandante das Forças Armadas, Ansumane Mané. Com esse assassinato, os jornais retomaram a mesma narrativa de 1998 e a partir das mesmas palavras-chave: pobreza, corrupção, tráfico de armas e drogas, e a relação visível com o Brasil por meio da CPLP.
Em 2012, a Guiné-Bissau ganha espaço na Folha, em 14 de abril, ao informar que “o pequeno país africano lusófono” sofreu outro golpe, com o sequestro do primeiro-ministro Carlos Gomes. Esse novo conflito ocorreu no período eleitoral e Gomes era um dos candidatos à presidência da República. Para a Folha, na Guiné-Bissau o “tráfico de cocaína, corrupção e disputas por poder enfraquecem o país, visto como um ‘narco-Estado’” (Folha, 14/04/2012, p. 20).
Os dois jornais também cobriram um golpe de Estado em São Tomé e Príncipe, no ano de 2003. Tanto em O Globo quanto na Folha as narrativas sobre esse conflito se assemelham. As palavras-chave que “qualificam” esse país lusófono são as mesmas de outros registros: pobreza, corrupção, tráfico de droga e a associação com o Brasil em razão da CPLP. Diferentemente da Guiné-Bissau, em São Tomé os interesses do petróleo entraram nos argumentos do conflito.
Na edição de 17 de julho de 2003, a Folha destacou que o golpe militar pegou o presidente santomense Fradique de Menezes fora do país, e que a motivação desse golpe havia sido o controle das riquezas do petróleo. Também diverso do que ocorreu na Guiné-Bissau, o jornal diz que “o governo brasileiro condenou e repudiou ‘firmemente’ o golpe e conclamou os revoltosos a cessar imediatamente o movimento” (Folha, 17/07/2003, p. 12).
O conflito em São Tomé e Príncipe foi noticiado em O Globo de 18 de julho de 2003. O jornal diz que os países da CPLP pretendiam enviar uma missão para “mediar um acordo com os militares” (O Globo, 18/07/2003, p. 27), com participação do Brasil. Chama a atenção a disposição gráfica na página do jornal sobre esse registro. O golpe em São Tomé e Príncipe parece ser um pequeno box da notícia maior, que é também um golpe, mas no Congo. Ou seja, podemos falar em um regime de visibilização tão configurado para a África que, mesmo sendo em países e contextos diferentes, eles são postos no visível como um bloco único.
Um outro conflito que mereceu atenção nos dois jornais nos 20 anos da CPLP foi o da luta pela independência do Timor-Leste. Esse conflito foi preenchido por alguns fatos importantes: o Nobel da Paz, em 1996, dividido pelos timorenses Carlos Ximenes Belo e José Ramos-Horta, líderes da resistência em Timor e que buscaram agendar o conflito; o envolvimento de comitês pró-independência no Brasil, com o engajamento de intelectuais e artistas; e as constantes ações do ativista timorense Xanana Gusmão, que esteve preso por 12 anos e buscava em organizações internacionais, inclusive na CPLP, ajuda à causa do Timor-Leste.
Antes mesmo da criação da CPLP, ativistas timorenses cobravam o envolvimento da comunidade lusófona em razão do Timor ter sido ex-colônia Portuguesa. Em 1998, em uma conferência da CPLP, uma comissão do Timor pediu o apoio oficial da entidade, mas não foi atendida como deveria. A partir daquele ano, a Indonésia aumentou a repressão contra os timorenses. Em 6 de setembro de 1999, O Globo trouxe reportagem assinada pela Agência France Press que, curiosamente, culpava a resistência, o movimento pró-independência de Timor pela violência em Dili, a capital. O jornal cobrava responsabilidade da Indonésia por não ter tido “força” para controlar a ex-colônia portuguesa, o que gerava “Anarquia no Timor Leste”, título da notícia.
Depois de intensas lutas e massacres, o Timor-Leste conquista a independência em um processo que somente vai se consolidar a partir de 2002, ano em que o novo país ingressa na CPLP. Depois da independência, o Timor praticamente desaparece dos jornais brasileiros. Na Folha, pequenas notas sobre a dificuldade de consolidação do país e uma reportagem em março de 2005, quando o Governo Lula decide mandar professores ao país. A outra notícia na Folha está na edição de 08 de abril de 2007, em Mundo, página 17, sobre a “turbulência” das eleições presidenciais. Chama a atenção nesses registros a ausência da CPLP, a violência e as interferências internacionais, especialmente da Austrália.
A Folha e O Globo trazem, a partir da eleição de Ramos-Horta como presidente do Timor-Leste, o recrudescimento da violência naquele país. Na edição de 12 de fevereiro de 2008, os dois jornais noticiaram um atentado contra o presidente, uma ação atribuída a ex-militares ligados à Indonésia. Nas notícias dos dois jornais se vê a indiferença da CPLP, ao tempo em que o presidente do Timor recebe apoio do exército australiano.
Os registros sobre os conflitos em Timor-Leste revelam a distância entre esse país, o Brasil e a própria CPLP, apesar do intenso esforço de sensibilização e do pedido de acolhida na comunidade por suas lideranças políticas. Quando se tratou da CPLP nos jornais, Timor-Leste esteve no mesmo campo de invisibilização dos países africanos. A Folha e O Globo trataram o Timor como o Outro que está à distância, e que parece não ameaçar os brasileiros como os “africanos”, mais próximos do Brasil. Todavia, sobre o Timor, as notícias empregam as mesmas cargas de miséria, pobreza, ignorância, pintando-o aquele país de negro.
Em resumo, os dois jornais utilizaram-se da existência de conflitos internos envolvendo os países da CPLP para dar visibilização a essa comunidade e fazer a associação com o Brasil. Essas ações de seleção e de associação tinham um objetivo que parece nítido: provocar a imediata rejeição do Brasil a essa comunidade. Com isso, os jornais propõem que não nos reconheçamos como membros de um grupo de países pobres, cheiros de doenças, corrupção, tráfico de drogas, ditadura, e agora, com golpes militares, grupos rebeldes, etc. Tudo isso é parte da construção não apenas para a invisibilização, mas para a rejeição e o combate da possibilidade de aproximação entre Brasil e CPLP.
Como os dois maiores jornais brasileiros trataram de questões de cultura dessa comunidade nos 20 anos da CPLP? A cultura implicaria uma narrativa de reconhecimento histórico-identitário? Isso veremos na próxima semana.