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“Colhendo cerejas com as bordas da saia”: o experimentalismo enquanto religião, a sensualidade como modo de vida!

“Colhendo cerejas com as bordas da saia”: o experimentalismo enquanto religião, a sensualidade como modo de vida!

Autodefinido como “um evento que visa fomentar a cultura do audiovisual, através de experiências que questionam a noção e produção da imagem em movimento”, o Festival Ecrã chegou à sua sexta edição em 2022, com duas etapas de exibição das obras: uma presencial, no Rio de Janeiro, entre os dias 01 e 10 de julho; e outra virtual, entre os dias 16 e 24 do mesmo mês. Na ocasião, estrearam várias produções brasileiras e internacionais, que tinham em comum a associação com o rótulo “experimental”.

Assumido como subgênero cinematográfico por alguns críticos, que não sabem como classificar seus produtos, este rótulo abarca obras de arte que rejeitam as convenções e narrativas tradicionais. No festival em pauta, além das sessões cinematográficas propriamente ditas, há também exposições, performances, lançamentos de jogos eletrônicos e programações especiais, que misturam todas essas categorias. O foco predominante na curadoria, de caráter independente, são os filmes, assim como os debates derivados dos mesmos. Falaremos sobre alguns deles, a partir de agora…

Tal qual ocorre em qualquer festival, não dá para prestigiar tudo o que é apresentado e, como muitos dos títulos são exclusivos e/ou de difícil acesso, convém utilizar o instinto cinéfilo para prestigiar as sessões. Foi assim que o autor deste artigo chegou a três excelentes recomendações, que apenas iniciaram as suas carreiras exibitórias…

O primeiro dos filmes que merece ampla exortação é o curta-metragem “Há Algo Além do Horizonte” (2022, de Marcos Paulo Alcântara). Trata-se de um ‘machinima’ – ou seja, narrativa expandida do universo de um jogo eletrônico – em que acompanhamos as variegadas tentativas de um fazendeiro para descobrir o que existe após as fronteiras de sua propriedade. Obrigado à rotina de tarefas rurais (cortar lenha, ordenhar as vacas, etc.), este protagonista – extraído do jogo ‘Red Dead Redemption II’ – suicida-se em mais de uma oportunidade, no afã por fugir de sua programação repetitiva, o que desemboca numa reflexão especular que alcança o próprio espectador, em seu conforto observacional.

O segundo dos filmes merecedor de atenção é o surpreendente longa-metragem documental “Filme Particular” (2022, de Janaína Nagata), que toma como ponto de partida a aquisição casual da diretora em relação a um rolo de filme em 16mm, comercializado pela Internet, que a leva a uma pesquisa obsessiva sobre a origem daquelas imagens, até descobrir relações com a implantação do ‘apartheid’ sul-africano. O processo de descobertas compartilhadas na narrativa hermenêutica, que é reconstituída pela montagem enquanto filme-processo, é mais uma genial demonstração do quão político é cada ato de nosso cotidiano: de um descontraído safári numa reserva florestal, passamos às causas que levaram ao assassinato do hediondo primeiro-ministro Hendrik Verwoerd [1901-1966]. O modo como as informações surgem na tela ratifica tanto a sensibilidade quanto a genialidade da diretora, que serve-se brilhantemente de uma canção advertente e protestante de Miriam Makeba [1932-2008] nos créditos finais. Dar mais detalhes pode estragar a experiência de imersão. Mas trata-se de um filmaço!

Por fim, o terceiro dos filmes a ser recomendado é “XCXHXEXRXRXIXEXSX” (2022, de Ken Jacobs – vide imagem acostada a esta publicação), recente petardo do veterano Ken Jacobs, cineasta ‘underground’ ainda ativo, no fulgor de seus oitenta e nove anos de idade. Trata-se da ampliação de um curta-metragem francês de realização anônima, no qual duas mulheres colhem cerejas e entregam-se a um ousado ‘ménage a trois’, no início do século XX. Nos cartazes de abertura, o diretor explica que sua obra não é direcionada a menores de dezoito anos e que pode causar efeitos colaterais a quem sofre de epilepsia ou hipersensibilidade à luz. Isso porque ele adota uma montagem repleta de imagens que piscam, oscilando entre o negativo e o positivo, configurando um efeito que ele define como “eternalismo”, ou seja, uma “magnificação do tempo”, que causa “uma ilusão de movimento em profundidade, sem óculos 3D”. Algo que pode desencadear tanto um orgasmo sensorial quanto uma exaustão física. Ou melhor, ambos ao mesmo tempo!

Ao longo da extensão do filme – pouco menos de uma hora e meia, na versão exibida –, vemos o trio revezar-se em práticas sexuais, que incluem a penetração do personagem masculino em uma das mulheres e o sexo oral praticado pela outra, em relação à sua companheira. Tais práticas, entretanto, são acompanhadas por uma trilha musical jazzística e muitas intervenções visuais. O ritmo é intencionalmente lento, e os pequenos gestos são fraturados em instantes ainda menores, deformando as imagens originais, que dão origem a formas quase cósmicas, como o pênis que assemelha-se a uma cachoeira com o fluxo d’água invertido ou os abundantes pêlos pubianos femininos, que dão à abertura vaginal a impressão de portal galáctico. No crédito derradeiro, uma ousadia adicional: além de mencionar o ‘link’ para outra produção do próprio Ken Jacobs, incita-se o espectador a assistir ao que restou da obra-prima muda “Ouro e Maldição” (1924, de Erich von Stroheim) e a ler “Ulysses”, de James Joyce. Experiência mais interativa que essas, só mesmo aderir à comunhão interpessoal capaz de propagar a espécie humana: “obrigado, floresta, com suas inúmeras investidas e quedas de vida. Poderia haver um cenário melhor?”, soleniza o diretor.

Esse trio de filmes extraordinários certamente estará disponível noutros festivais internacionais, sobretudo naqueles que visam à continuidade dos experimentos sobre materiais preexistentes e à subversão dos cânones produtivos. De nossa parte, não apenas elogiamos esses títulos como agradecemos aos seus realizadores pela hiperestimação destinada ao seu público. Idem quanto à organização do Festival Ecrã: que a vindoura sétima edição do evento seja muitíssimo bem-sucedida!

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