Se estivesse vivo, o cineasta venezuelano Diego Rísquez [1949-2018] teria completado setenta e um anos de vida em 15 de dezembro de 2020. Entretanto, ele faleceu, em decorrência de um tumor cerebral. Proveniente de uma linhagem masculina de médicos, ele enveredou pelo percurso artístico, onde desenvolveu uma obra extremamente crítica quanto à herança colonial em seu país. Mas não virou notícia de jornal. Até mesmo dentre os cinéfilos, são poucos os que o reverenciam…
Não obstante ter dirigido mais de uma dezena de longas-metragens, a filmografia risqueziana não é suficientemente conhecida. O que confirma aquilo que ele denuncia em suas obras, a tese orwelliana de que, em termos oficiais, “a História é escrita pelos vencedores”. Felizmente, isso vem sendo combatido pelas pautas identitárias contemporâneas, para citar um exemplo pós-acadêmico imediato. Por mais difícil que seja combater os cânones que são introjetados até mesmo entre os oprimidos. Dessa maneira, repensar os critérios de noticiabilidade jornalística é algo que faz parte do processo de ressignificação dos protagonismos históricos.
Nas universidades, é quase um clichê associar aquilo que é notícia ao que é inédito e inaudito. Entretanto, o agendamento noticioso dos grandes veículos midiáticos é cada vez mais poluído pelas reiterações oportunistas e pelas fofocas. E, assim, a corja bolsonarista atinge êxito na perpetuação de sua malevolência: algo grave aconteceu no Brasil? Basta proferir uma imbecilidade programada, que todos repetem à exaustão e obliteram o que é realmente importante. Enquanto isso, os números de mortos pelo CoronaVírus crescem, as atuações das milícias assassinas expandem-se, o impacto do golpe político protoditatorial torna-se cada vez mais ampliado… E Jair Bolsonaro periga ser reeleito em 2022, por incrível que pareça!
Diante deste panorama, (re)descobrir aquilo que foi abafado pelas forças destrutivas que gozam de algum poderio institucional é uma obrigação. E é assim que recomenda-se o longa-metragem “Orinoko, Novo Mundo” (1984), segundo componente da trilogia que Diego Rísquez realizou sobre as origens nacionais da Venezuela. Não há diálogos no filme: apenas música e muita beleza. Uma compensação audiovisual temporã em relação ao genocídio cultural cometido pelos invasores europeus em relação às comunidades nativas da América Latina. Uma jóia que precisa ser descoberta!
Precedido por “Bolívar, Sinfonía Tropikal” (1979) e seguido por “Amérika, Terra Incógnita” (1988), “Orinoko, Novo Mundo” tem como protagonista o rio que empresta seu nome ao título do filme. Seguindo o percurso do Orinoco, acompanhamos a reconstituição de mais de uma fase histórica da Venezuela, sem que haja uma linha narrativa definida: o diretor e roteirista prefere o alinhavamento da resistência. Como tal, somos apresentados aos rituais Ianomâmis logo na abertura – e eles terão um papel fundamental nos eventos apresentados, sem narração condutiva, mas com relevante abertura à sensibilidade do espectador.
Dentre as situações filmadas por Diego Rísquez, a mais identificável é a chegada da tripulação de Cristóvão Colombo à América do Sul. A rápida exploração das tribos originárias é demonstrada a partir da violência simbólica, que logo converte-se em violência física: um missionário católico obriga os índios que estão numa canoa a beijarem o crucifixo que ele traz em mãos. Logo, vemos o mesmo missionário chicoteando outros índios, que precisam derrubar algumas árvores, a fim de construírem, forçadamente, uma enorme cruz de troncos. Não demorará para que o religioso apareça boiando no rio, alvejado por flechas…
Organizados como se fossem ‘tableaux’, os fotogramas deste filme evidenciam o rigor da educação pictórica do cineasta, que beneficia-se de uma direção de fotografia esplêndida. Noutra seqüência, um bandeirante fica deslumbrado diante das sereias com que se depara no rio. Mais à frente, a invasão de um forte militar será influenciada pela intervenção dos herdeiros das tribos indígenas. Biólogos quedarão fascinados perante a riqueza de fauna e flora que encontram na Venezuela. Papagaios variados desfilam diante da câmera enquanto cágados caminham sobre mamões e outras frutas tropicais. “Orinoko, Novo Mundo” é um filme inebriante, portanto!
Como não há diálogos, as relações entre os personagens requerem a adesão sinestésica dos espectadores, que complementam com suas próprias experiências subjetivas as alegorias apresentadas pelo diretor. Desde o olhar entristecido de um pajé até a cachoeira que parece sair da vagina de uma atriz. É um filme, portanto, que volta-se para o passado, a fim de orientar-nos a prestar atenção em situações similares de rapina classista (e racial) que ocorrem no presente. Seria até redundante estabelecer um paralelismo com o Brasil atual, onde a devastação da floresta amazônica atingiu níveis exorbitantes e mui preocupantes. O Ministério do Meio Ambiente, sob o jugo do bolsonarismo, age de maneira invertida: ao invés de preservar, destrói. É a tônica dominante em todas as seções deste (des)governo. Convém parar de retroalimentar uma noticiabilidade viciada que favorece esses déspotas não-esclarecidos. Olhemos ao redor, enquanto ainda há o que ser resgatado!
Wesley Pereira de Castro.