No dia 21 de agosto de 2022, o cineasta gaúcho – mas radicado na periferia da cidade de São Paulo – Cristiano Burlan completou quarenta e sete anos de idade. Traumatizado biograficamente pela perda trágica de mais de um integrante de sua família, ele realizou uma impactante trilogia de documentários, concatenados pela temática do luto [“Construção” (2006), “Mataram Meu Irmão” (2013) e “Elegia de um Crime” (2018, comentado aqui)]. Na noite anterior à data supracitada, ele recebeu o Kikito de Melhor Direção no Festival de Cinema de Gramado pelo longa-metragem ficcional “A Mãe” (2022), que recebeu também os troféus de Melhor Desenho de Som e de Melhor Atriz, para a veterana Marcélia Cartaxo. Tem presente de aniversário melhor que esse?
Na trama deste seu filme mais recente, percebemos o aproveitamento de aspectos muito pessoais no roteiro: a protagonista do filme é uma mulher que busca desesperadamente o seu filho que pode ter sido assassinado por policiais, após uma violenta ação contra o tráfico de drogas. Mais ou menos como aconteceu em relação ao extermínio do próprio irmão do diretor, quando ele ainda era adolescente…
“A Mãe” era um dos sete longas-metragens brasileiros concorrentes, na seção oficial do referido festival. Os prêmios, entretanto, ficaram divididos entre apenas quatro títulos. Não obstante os elogios eventuais da crítica e as recepções acaloradas do público, “A Porta ao Lado” (2022, de Júlia Rezende), “O Clube dos Anjos” (2022, de Angelo Defanti) e “O Pastor e o Guerrilheiro” (2022, de José Eduardo Belmonte) não foram consagrados na cerimônia de premiação. Mas todos merecem ser vistos e divulgados, confirmando a relevância do Festival de Gramado enquanto plataforma distributiva.
O drama sobre uma atleta de saltos ornamentais que aprende a lidar com um zumbido auditivo, “Tinnitus” (2022, de Gregório Graziosi), recebeu os prêmios de Melhor Fotografia, Melhor Montagem e Melhor Direção de Arte, enquanto o curta-metragem “Fantasma Neon” (2021, de Leonardo Martinelli, já premiado no Festival de Cinema de Locarno) recebeu cinco prêmios: além do Kikito principal na referida categoria, recebeu as láureas de Melhor Direção e Melhor Ator (para Dennis Pinheiro), foi escolhido como o Melhor Filme de Curta-Metragem segundo o Júri da Crítica e recebeu também o troféu Canal Brasil. Numa de suas eloquentes falas, em agradecimento aos galardões recebidos, o jovem diretor enfatizou que “o curta-metragem é um universo em si mesmo”!
Os demais prêmios para os longas-metragens brasileiros foram compartilhados entre três filmes: além do já citado “A Mãe”, a produção mineira “Marte Um” (2022, de Gabriel Martins) e o petardo acreano “Noites Alienígenas” (2022, de Sérgio de Carvalho) receberam diversos Kikitos. O primeiro versa sobre as dificuldades enfrentadas por uma família negra que vive no município de Contagem, em Minas Gerais, e recebeu as estatuetas de Melhor Roteiro, Melhor Trilha Musical e Melhor Longa-metragem segundo o Júri Popular, além de um prêmio especial; o segundo, entretanto, foi o grande premiado da noite, algo inédito para uma produção realizada no Acre, Estado com pouca tradição cinematográfica. Este filme recebeu não apenas o Kikito de Melhor Longa-Metragem Brasileiro, mas também o prêmio de Melhor Longa-Metragem segundo o Júri da Crítica, uma Menção Honrosa para o ator amazonense Adanilo e os Kikitos de Melhor Ator e Atriz Coadjuvantes (respectivamente, Chico Diaz e Joana Gatis) e de Melhor Ator para o ‘rapper’ Gabriel Knoxx, que estava muitíssimo emocionado.
Durante as vezes em que subiu ao palco para defender os méritos de “Noites Alienígenas”, a produtora-executiva Karla Martins comentou que, até então, sentia-se como “aquele parente que precisava ficar espremido na foto de família”, mas, agora, pôde testemunhar algo histórico naquele festival: o momento em que uma produção nortista fora devidamente valorizada por um júri nacional. Os discursos dos premiados foram unânimes no repúdio ao atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que desvaloriza a diversidade cultural do país em suas intervenções de extrema-direita.
A quase totalidade dos profissionais focalizados pelas câmeras que transmitiam o evento foi flagrada difundindo o seu apoio ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva, o que é metonimizado através de um gesto com as mãos, que imita a letra ‘L’. O diretor Bruno Gularte Barreto, que foi premiado numa categoria local pelo filme “5 Casas” (2021) – que recebeu os troféus de Melhor Longa-Metragem Gaúcho, Melhor Direção, Melhor Longa-Metragem segundo o Júri Popular e Melhor Montagem – ousou enfrentar quem reagia zombeteiramente às menções elogiosas ao nome do referido candidato, agradecendo pelos benefícios culturais experimentados durante os governos do PT (Partido dos Trabalhadores), o que foi referendado por mais de um artista. “Quem está xingando o Lula é quem não se importa com a cultura, quem não gosta de cinema”, disse ele. Não discordamos!
Vale a pena destacar, em meio aos diversos premiados, a Menção Honrosa recebida pelo curta-metragem sergipano “Ímã de Geladeira” (2022, de Carolen Meneses & Sidjonathas Araújo), que foi elogiado pelo modo inventivo como mistura gêneros tradicionais para abordar as questões referentes à chaga do “racismo estrutural”. A co-diretora listou vários realizadores não-brancos em seu potente discurso de agradecimento, somando-se ao coro de opositores ao protofascismo bolsonarista. Ainda enfatizando a verve partidária de enfrentamento, Thiago Macêdo Correia, produtor do filme “Marte Um”, serviu-se de uma oportuna metáfora: “quando a gente olha para o céu e vê uma estrela, essa é a nossa esperança”. Muitos usavam vermelho durante a cerimônia – e não era por acaso: para o audiovisual brasileiro, a esperança de continuidade repousa na vitória do PT nas eleições presidenciais programadas para acontecerem em 02 de outubro. Tudo isso ultrapassa as meras intenções compartilhadas de voto, portanto!