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“A pior coisa do mundo é o fanatismo”: a História enquanto espetáculo de terror!

“A pior coisa do mundo é o fanatismo”: a História enquanto espetáculo de terror!

Em períodos de extrema convulsão social, os filmes de terror possuem função catártica. Em momentos de anomia, tornam-se obrigatórios enquanto exortadores ativos. É o que ocorre quanto ao épico brasileiro “O Cemitério das Almas Perdidas” (2020, de Rodrigo Aragão), lançado virtualmente devido à necessidade de contenção da COVID-19, que fez com que os cinemas permanecessem fechados por vários meses. Os bares, entretanto, continuaram abertos. Os ‘shopping centers’ também. Parte considerável da população brasileira sobreviveu graças ao pagamento de um Auxílio Emergencial de r$ 600,00, distribuído ao longo de cinco meses, valor insuficiente para pagar as contas básicas e adquirir um mínimo de comida. A quem interessa a abertura dos estabelecimentos supracitados, portanto?

Num contexto nacional marcado pelas queimadas abundantes, pelos discursos de ódio – proferidos sobretudo por alegados religiosos – e (des)governado pelo ignóbil representante de um emburrecimento censurador e vilanaz, os horrores mostrados no filme soam quase ingênuos, não tão agressivos quanto aqueles que são efetivados pelas diuturnas depravações presidenciais. Mas o grande mérito do filme talvez seja esse, posto que ele justifica-se através do recorte histórico. Sem ser a sua intenção direta, explica o porquê da devassidão política atual.

Situado inicialmente num período indefinido da Idade Média – quiçá, o século XVI –, acompanhamos no entrecho o extermínio progressivo de uma ordem de jesuítas, obcecados pelos rituais satanistas contidos num livro cobiçado por um homem que alcunha a si mesmo como Cipriano (Renato Chocair). Após assassinar todos os seus irmãos de congregação, ele foge numa nau em direção ao Brasil, e, durante uma tempestade, tem a oportunidade de demonstrar os seus poderes, fascinando a tripulação. “Preciso de sangue!”, alega ele, a fim de pôr em prática um de seus feitiços. É quase uma metáfora de como organiza-se a cúpula bolsonarista, ao definir as pautas dos pronunciamentos oficiais do presidente Jair Bolsonaro…

Depois dos créditos iniciais, um novo núcleo de personagens é apresentado: uma trupe circense chega ao local onde, presumivelmente, alojou-se a tripulação amaldiçoada. A despeito de um anacronismo proposital, estamos numa ambientação contemporânea. Os artistas montam um espetáculo de nome “Mausoleum”, que apavora os moradores locais. Entre eles, uma beata neopentecostal que assevera contra aquilo que testemunha: promete, em companhia de um séquito de inflamadas odiadoras, queimar as tendas e tudo o que está relacionado ao espetáculo. É quando as duas situações temporais se cruzam e estabelece-se o banho de sangue a que o diretor acostumou-nos em suas obras anteriores…

Nesses dois parágrafos sinópticos, antecipa-se aquele que é o maior problema do filme: o caráter vago de seu roteiro, em que personagens surgem e desaparecem de maneira célere, sem que tenhamos tempo de nutrir a devida simpatia (ou antipatia) por eles, além de serem caracterizados estereotipicamente. Porém, isso também pode ser interpretado como uma virtude, já que o enredo possui inúmeros aspectos alegóricos. A trama, em dado momento, passa a ser o que menos importa no filme: quando os inspirados efeitos visuais e a extraordinária maquiagem insurgem-se, o deleite é autotélico, fascina-nos a partir do prolongamento repulsivo do gozo!

Enquanto ponto culminante da filmografia do capixaba Rodrigo Aragão – não sendo superior apenas à sua obra-prima, “Mar Negro” (2013) – “O Cemitério das Almas Perdidas” aproveita magistralmente todas as suas marcas registradas estilísticas, favorecidas por uma equipe coesa de colaboradores habituais. Além da estonteante direção de arte elaborada por Eduardo Cardenas, da providencial assistência de Joel Caetano e da insigne trilha musical de João MacDowell, que, como de praxe, amalgama temas operísticos e rompantes regionalistas, este filme conta com a participação de um elenco visivelmente apaixonado, que compensa o pouco tempo em cena de alguns personagens com extrema devoção. Não por acaso, lembramos o tempo inteiro das improvisações actanciais do mestre José Mojica Marins [1936-2020], reverenciado em epígrafe.

Tal qual o criador do célebre Zé do Caixão, Rodrigo Aragão adapta seus interesses tramáticos àquilo que pode ser realizado nas condições essencialmente subdesenvolvimentistas do cinema brasileiro. E, numa brilhante demonstração de consciência discursiva, sintetiza metalinguisticamente os apuros roteirísticos do filme, ao fazer com que a trupe mambembe elabore uma versão menos assustadora de sua peça de terror, a fim de não ensandecer os brios coléricos de um grupo de beatas evangélicas. Obviamente, a sanha vingativa não pôde ser contida, mas isso deve-se menos à incapacidade de interpretação simbólica do público mostrado que à inevitabilidade comportamental de quem foi criado para assustar. Para quem odeia, causas e consequências são convenientemente invertidas!

Os fãs longevos do diretor notam que a manutenção platônica de um par amoroso consta como mote renitente em seus ótimos filmes. Em “O Cemitério das Almas Perdidas”, este recurso é reelaborado de maneira ainda mais inteligente: inicia-se como uma troca de fervores pedagógicos entre o bem-intencionado jesuíta Joaquim (Caio Macedo) e a prisioneira indígena Aiyra (Allana Lopes); transmuta-se num conúbio onírico entre ela e o ator mambembe Jorge (Diego Garcias), desde a infância deste último; e concretiza-se na amizade vocacional entre ele, que é negro, e a albina Brigitte (Carol Aragão, filha do diretor), interrompida pelo fato de ela ser a única sobrevivente do massacre generalizado e multirracial em que converte-se o filme, em dado momento. É uma obra autoral, portanto.

Se, por um lado, o roteiro fragmentado de “O Cemitério das Almas Perdidas” assume-se como seu maior defeito, já que as boas ideias parecem isoladas e muitos personagens desaparecem sem que compreendamos devidamente a sua importância na trama (vide o que acontece com uma garota atraída pelo cenário titular), por outro, a ausência de teleologia pode ser lida como um eficiente sintoma político do filme, cujo desfecho permanece em aberto. Da mesma forma que ocorre com a política brasileira, o ciclismo é dominante enquanto estigma histórico: por isso, o racismo ainda é tão presente em nossa sociedade; por isso, infelizmente, as tribos indígenas são constantemente dizimadas; por isso, as religiões são utilizadas como ferramentas de continuidade do exato oposto daquilo que apregoam. Ao invocarem ensandecidamente o nome de Deus, seus hipócritas perpetradores agem como descendentes pragmáticos de Satanás, exatamente como o filme exibe. E, do lado de fora das telas, ainda há a ameaça de reeleição: eis o verdadeiro terror!

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