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A luta do Brasil contra a mobilidade na CPLP

A luta do Brasil contra a mobilidade na CPLP

Um dos temas mais dramáticos que surgiram na investigação que realizamos e concluímos em 2017 sobre os 20 primeiros anos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa no Brasil foi o da mobilidade. Além de ser uma questão de difícil clareza interna na CPLP (ou talvez esteja clara demais), a remota possibilidade de “livre circulação” dentro da comunidade sofreu um duro e permanente combate dos dois principais jornais brasileiros (Folha de S.Paulo e O Globo), onde fizemos os levantamentos dos dados dessas duas décadas (1996-2016) no Brasil. Esses periódicos, como porta-vozes dos interesses das elites nacionais, não apenas apagaram esse tema, mas o pouco que veio à luz, foi duramente criminalizado.

Acredita-se que uma reunião de países, isto é, de nações profundamente constituídas entre si por histórias, culturas e identidades comum e que resolvem nomear-se como “pares”, formando uma “comunidade”, a ideia de mobilidade é central, não como problema, mas como exigência da própria ideia de “comum”. De fato, concretamente, para se experimentar uma comunidade não pode haver a mínima sombra de qualquer impossibilidade de livre circulação entre seus pares. Entretanto, na vida prática, a teoria não é bem assim, e que bem que diga a comunidade europeia, transformada em união europeia, uma mudança que não foi simplesmente de nomenclatura.

Em nossa investigação, a imaginária liberdade de poder circular sem barreiras pelo espaço lusófono dos pares de uma mesma comunidade se revelou uma preocupação-problema constante, mesmo no pouco visível sobre a CPLP nos dois jornais brasileiros. Nas raras notícias dos presidentes, de modo especial dos portugueses, essa questão apareceu como questionamento dos jornais brasileiros. Eles reagiam duramente à ideia de “livre circulação” na comunidade dos países de língua portuguesa, exigiam de Portugal posição e rigor para que isso não se concretize e criminaliza qualquer iniciativa que possibilite pensar, reconhecer e partilhar um espaço comum, um passo para a experiência communitas.

O jornal O Globo, por exemplo, em 30 de julho de 2002, trouxe uma notícia que parecia algo até positivo sobre a CPLP. O título foi: “Acordo vai criar a cidadania lusófona”. Esse registro foi resultado de uma conferência da CPLP realizada em Brasília em 2002 e, nela, os países dessa comunidade assinariam um acordo para “facilitar” a circulação entre as nações lusófonas. O Globo entrevistou a brasileira Dulce Pereira, secretária-executiva da CPLP. Logo se percebe que o título e a sua frase de apoio (“Cidadãos dos países de língua portuguesa terão seus direitos ampliados”) não correspondiam às decisões da CPLP.

O primeiro aspecto a destacar nesse registro, porque é sintomático, é o de que essa notícia sobre a “cidadania lusófona” foi publicada na página 12, junto com notícias de violência, polícia, crime. A informação sobre o evento da CPLP, de um acordo para “cidadania lusófona” e da mobilidade nessa comunidade estava junto aos registros de um mafioso italiano preso; de um dono de escola acusado de assassinato; do presidente da Pastoral da Terra que defende crimes. Está claro que para o jornal a ideia de “livre circulação”, de “cidadania lusófona” e de “mobilidade” são casos de polícia, de violência, de crime.

Ao analisarmos atentamente esse texto de O Globo (30/07/2002), percebe-se o porquê de ele estar inserido na página policial. O jornal revela o temor de que os povos da comunidade dos países de língua portuguesa “possam ter os mesmos direitos que os brasileiros”. No entanto, a secretária da CPLP, Dulce Pereira, trata logo de “tranquilizar” os jornais brasileiros. Ela afirma que a ideia desse “acordo é incentivar atividades econômicas” e beneficiar os “médicos, empresários, jornalistas e diplomatas” (O Globo, 30/07/2002, p. 12). O jornal conclui a notícia informando que “o governo brasileiro não teme que o acordo incentive a imigração de africanos para o Brasil”, e que os limites impostos aos “africanos” permanecem inalterados.

Assim, fica bem nítida revelação do motivo do combate à ideia de livre circulação entre nós: os africanos. Por isso, essa notícia da CPLP ter sido editada na página policial. O Outro nesse caso, o eterno estrangeiro a ser combatido e eliminado está plenamente visível para ser criminalizado. Ele é negro, africano, pobre. Mesmo sem sua presença física – impedida e apagada – ele é uma presença incômoda.

Quando o assunto é mobilidade na CPLP os jornais fazem emergir no regime de visibilização uma seleção noticiosa mais racista ainda, uma lógica construída desde o Brasil Colônia, uma formulação ideológica da alteridade que “conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (Bhabha, 1998, p.105). Desde as notícias que analisamos sobre os presidentes brasileiros, há uma rigorosa presença em quase todos os textos, nos dois jornais, que associa pobreza, miséria, crime, droga, corrupção, doença com os países africanos lusófonos. Nos registros dos Acordos institucionais, essa lógica também se mantém.

Vejamos outro exemplo: em 27 de julho de 2008, por exemplo, O Globo publicou que o presidente Lula, em reunião da CPLP, anunciou que criaria uma universidade no Brasil para atender os estudantes dos países da comunidade. Em 2010, foi inaugurada a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), com sede em Redenção/CE. Assim como aconteceu com a notícia sobre a “cidadania lusófona” (O Globo, 30/07/2002, p. 12), o anúncio do presidente Lula de que criaria essa universidade, também foi publicado junto aos registros criminais naquele jornal.

Além disso, há uma propaganda ao lado (ocupando um espaço maior do que a própria notícia) de uma empresa de seguro que promete proteção contra “invasores de computadores”. A foto da peça publicitária é uma figura humana, mas faz-se passar por um alienígena e que parece furtar o computador. O título da notícia da CPLP é “Universidade no Ceará vai formar africanos”, e a condição de “africanos” talvez explique o porquê de ela estar na página policial, ao lado do anúncio sobre os invasores. “Porque você nunca sabe quando um problema vai invadir seu computador”, diz o texto da publicidade.No corpo dessa notícia, ao contrário do título (“…formar africanos”), informa-se que metade dos estudantes será de brasileiros e a outra metade será formada por jovens dos demais países da CPLP, isto é, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, guinéu-equatorianos, moçambicanos, sãotomenses, timorenses e portugueses. Ou seja, não será para “formar africanos”. A palavra “africano” usada no título da notícia pelo jornal é o dispositivo a produzir a condenação e a rejeição. Ele está visível para ser criminalizado, como o invasor, o Outro perigoso, negro, pobre, que ousou atravessar a fronteira.

Timor-Leste: criminalização além da África
Para perceber essa criminalização, observemos mais um exemplo para além dos países lusófonos africanos. No Governo Lula foi assinado convênio com Timor-Leste para que professores brasileiros fossem para lá enviados. A missão era ensinar a língua portuguesa aos timorenses em razão de que, nos 27 anos de dominação da Indonésia, o português foi proibido em Timor. A Folha de S.Paulo, na edição de 28 de março de 2005, trouxe uma reportagem sobre a ida dos educadores brasileiros ao Timor. A narrativa começa com uma retranca (uma marca de texto no início da reportagem) sugestiva e fora do padrão daquele jornal: “o outro lado do mundo”, mas que não foi usada para Austrália, Indonésia e outros países próximos ao Timor. A Folha inicia o texto: “Na mala um carregamento de repelentes de insetos, na mão comprovante de vacinas contra moléstias tropicais e no bolso um dicionário do exótico dialeto tetum” (Folha, 28/03/2005, Cotidiano, p.6). O jornal faz uma pequena entrevista com uma professora que vai ao Timor. “E seu eu ficar doente? Não sei se há curandeiros no Timor”.

O jornal ainda conta que professores prepararam um “kit sobrevivência” com galocha e “pastilhas de cloro para purificar até a água de banho no país mais pobre da Ásia” (Folha, 28/03/2005, p.6). Mais uma vez o repelente, agora acompanhado de vacina contra moléstias, dicionário exótico, pastilhas de cloro e um “kit sobrevivência”. Ou seja, temos o Outro visível e, nesse caso, mesmo sendo na Ásia, o Timor-Leste foi vestido de África pela Folha de S.Paulo, já que os males sempre foram atribuídos pelos jornais a esse último continente.

Na próxima semana continuaremos a apresentar os resultados dessa investigação. Vamos saber como os dois jornais brasileiros trataram dos conflitos/golpes/guerras nos países da CPLP.

REFERÊNCIA
Bhabha, Homi K (1998). O Local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

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