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“A lei das ruas é olhar, ouvir… e ficar calado!”, ou de quando precisamos saber a hora de parar…

“A lei das ruas é olhar, ouvir… e ficar calado!”, ou de quando precisamos saber a hora de parar…

Independente de qual seja o resultado das eleições presidenciais brasileiras, cujo segundo turno ocorre em 30 de outubro de 2022, o vencedor lidará com um país ideologicamente dividido: para além da dicotomia Lula X Bolsonaro, manifestar-se-á uma cadeia de cisões e insatisfações, que nos obrigam a sermos assaz seletivos acerca do que lemos e publicamos. Convém preservarmo-nos: provocações que possam desencadear intencionalmente reações de ódio são desaconselháveis neste momento. Basta averiguar as principais manchetes políticas (interseccionadas com as policiais) dos últimos meses para confirmar que este não é um conselho casual…

Diante da situação descrita, esta coluna, que associa persistentemente as indicações fílmicas às confirmações noticiosas de caráter esquerdista, recorrerá a um estratagema ostensivamente desesperado: a urgência por celebrar a vida. Por mais violento que seja o contexto, é mister enxergar algo digno de menção elogiosa e/ou celebratória. Mesmo que estejamos atravessados pelas dores e eventual fatalismo do dia a dia, é recomendável que uma filigrana de esperança prossiga ativa. Transformar a sociedade é missão cotidiana, e, conforme atestou o historiador e filósofo Antonio Gramsci [1891-1937]: “o erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado”. Levemos à risca este apotegma, portanto!

Aproveitando que um dos eventos cinematográficos mais importantes do Brasil, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ocorre em paralelo com a derradeira semana antes da eleição supramencionada, convém aproveitar os títulos disponíveis para deleite cinéfilo. A quadragésima sexta edição do evento, que acontece entre 20 de outubro e 02 de novembro do corrente ano, selecionou duzentos e vinte e três filmes, produzidos por sessenta países, e a maior parte deles será exibida presencialmente, visto que as salas de cinema voltaram a ser freqüentadas, depois que a COVID-19 foi minimamente controlada (a despeito dos atos em contrário do atual e ignóbil presidente, façamos um necessário parêntese).

Dentre os títulos que puderam ser conferidos de maneira virtual, recomendamos o longa-metragem mexicano “As Hostilidades” (2021, de M. Sebastián Molina), sobre a crescente ação dos traficantes no povoado de Santa Lucia, onde vive a família do realizador. Em pouco menos de setenta minutos de duração, o diretor entrevista vários de seus parentes, que falam sobre as transformações ocorridas na cidadezinha em que vivem, agravadas pelas ações dos cartéis de drogas. Apesar da indução temerosa de certo pessimismo, decorrente das falas sobre tiroteios recorrentes e a metonomização do mal-estar provocado pelas seqüências que mostram rinhas de galos – que brigam até a morte, incitados por seus respectivos donos –, o documentário possui diversos instantes de beleza, proporcionados pelos olhares graciosos e pelos sorrisos de crianças que brincam de maneira entusiasmada, alheias às preocupações dos adultos.

A maior parte dos entrevistados é enquadrada transversalmente e não nomeada diretamente, a fim de evitar perseguições por causa dos relatos compartilhados. Um deles fala sobre um trote de que foi vítima antes de entrar para o exército (quando precisou lixar uma tatuagem, a fim de ser admitido); outro menciona as tragédias provocadas pelas brincadeiras envolvendo armas, facilmente acessíveis entre os moradores; um terceiro, à guisa de narração, alega que “o chão do povoado secou e virou concreto”. Mas ainda é possível divertir-se em meio às ameaças e arruaças das gangues.

Como os entrevistados são adolescentes – primos do diretor, conforme explicado –, algumas observações sobre a crueldade implícita na lógica capitalista de estímulo perene ao consumo parecem deslumbradas. Porém, são dignos de aplausos e continuidade reprodutiva os argumentos que eles utilizam para recusar a participação em organizações criminosas, cientes de que viveriam pouco, caso assim o fizessem, visto que os líderes de gangues costumam ser temperamentais em seus acessos de fúria vingativa: “qualquer desavença, e eles matam não apenas quem os desagradaram, mas também seus irmãos, pais, amigos e quem quer que estejam relacionados a eles”. Entretanto, há uma incômoda ambigüidade na tradução de algumas das palavras corriqueiramente utilizadas pelos moradores: “chefe” pode ser tanto um pai de família como o líder da organização criminosa, ao passo que “quartel” pode ser tanto um reduto militar como o nome do clã responsável pela venda de substâncias ilícitas. Onde instaura-se a imoralidade enquanto prática dominante, as práticas de grupos tendenciosamente opostos tendem a ser equiparadas. Daí o perigo das bravatas eleitorais hodiernas, que alegam ser válido “servir-se das mesmas armas dos inimigos” para ganharem uma campanha. Será que vale a pena?

M. Sebastián Molina, em sua estréia na condução de longas-metragens, prefere responder com o intimismo: em mais de uma oportunidade, os seus parentes declaram que família é um conceito que vai além das distâncias físico-geográficas, e que as pessoas podem estar muito próximas mesmo que morem a quilômetros de distância e que não se vejam presencialmente há anos. A narração em primeira pessoa confirma isso, quando o diretor conversa com o seu pai, acerca das principais diferenças entre Santa Lucia e a capital mexicana e o que o leva a preferir morar numa cidade pequena. Ao final, a impressão definitiva de que algo mudou, por mais que aquele seja “um lugar em que nada acontece”. É imperativo sobreviver, mas sem perder a ternura, tal qual sintetizou um célebre revolucionário. Caso os textos dessa coluna pareçam exíguos, daqui por diante, eis um dos motivos.

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