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A fenomenologia dos populismos totalitários do século XXI e o discurso da crise das democracias liberais

A fenomenologia dos populismos totalitários do século XXI e o discurso da crise das democracias liberais

Para compreendermos a génese da fenomenologia dos novos populismos totalitários na contemporaneidade – nas suas múltiplas definições e partilhas de conceitos ideológicos comuns – nomeadamente em Portugal, precisamos recuar aos finais do primeiro quartel do século XX e analisar os «discursos da crise» (Torgal, 2010) da república e da falência dos modelos das democracias liberais na Europa nos inícios do século.

Num contexto em que as democracias ocidentais se confrontam com a ascensão de fenómenos de populismos de cariz autoritário – providos de discursos radicalizados – progressivamente vimos a assistir à infantilização da crítica e da prática discursiva, razão que poderá levar ao desinteresse pela participação pública na vida política e acentuar os fenómenos de abstenção (Goes, 2020). Veja-se a composição do Parlamento Europeu, onde cerca de um quarto dos parlamentares eleitos são da extrema-direita do espectro político.

A progressiva fragmentação do poder, a reativação dos separatismos regionais e o aparecimento de movimentos independentistas – nomeadamente na Catalunha e no País Basco, na Escócia e na Irlanda do Norte – um pouco por toda a Europa, são acentuados pelo euroceticismo generalizado, como vimos no caso do “Brexit”. Os novos conflitos armados e as tensões militares no espaço europeu – divisão na Ucrânia e a anexação da Crimeia, os conflitos e disputas territoriais na região da Turquia ou nas periferias – têm vindo a justificar as novas políticas militaristas, abalando a “Pax” europeia. O novo militarismo do espaço europeu, não acompanhado de uma união política, vê a credibilidade da sua ação, agravada pelas políticas unilateralistas do eixo euro-americano. O unilateralismo tendo vindo a contribuir para um novo ordenamento de relações geopolíticas e para a afirmação de novas potências regionais, no plano internacional e está relacionado com a ascensão dos novos populismos.

Os novos populismos totalitários, coadjuvados por aliados internacionais ou “contrapoderes ocultos”, são hábeis a aproveitar as mudanças ao paradigma de paz social na Europa e tornaram-se nos principais protagonistas da instabilidade política no seio da União Europeia, disseminando como uma pandemia (Rosas, 2019) as ideologias totalitárias, repressivas, racistas e xenófobas. Revisitando a história contemporânea, às crises sociais e económicas sucederam-se crises políticas e estas deram origem a crises bélicas.

Os «nacionais-populismos» (Tavares, 2020), partidos ou movimentos totalitários do século XXI, disseminaram-se por toda a Europa, formando governos na Hungria, Turquia (Tavares, 2020), Áustria, Polónia, Itália, entre outros países ou crescendo como oposição aos governos e sistemas constitucionais, adquirindo largas representações parlamentares, na França, Alemanha, Espanha e mais recentemente em Portugal.

Os populismos autoritários, de cariz nacionalista, assumiram o lugar deixado vago pelos partidos progressistas e moderados, apresentando-se como resposta ilusória às crises das democracias liberais.  Uma vez no poder, a perpetuação dos «nacionais-populismos» passa a acontecer através de alterações às leis eleitorais, pela não limitação de mandatos, pela perseguição das oposições (Tavares, 2020), pela  compra da comunicação social e pelo desincentivo à participação cívica ostracizando minorias e incentivando à emigração dos jovens. 

As representações parlamentares e os partidos tradicionais europeístas, fundadores ou herdeiros dos sistemas constitucionais nos vários países europeus, quando limitados a um «rotativismo» partidário na composição dos governos, deixam de se apresentar como resposta aos reais problemas de um país ou região. Notem-se os precedentes históricos que existiram na generalidade dos países vitimas dos fascismos do século passado. Em Portugal o «rotativismo» partidário do século XIX, originou uma «crise das elites» (Marques, 1986) e o subsequente colapso da monarquia constitucional. Na 1ª República, o fracasso do novo rotativismo republicano foi uma das razões da queda deste regime implantado (Marques, 1986), em estreia no país. Em ambos os casos a resposta política consubstanciou-se na instauração de ditaduras.

Na História, como na contemporaneidade, «os “Centros” ideológicos e sociológicos, tipicamente moderados e dispostos ao compromisso e à viabilização de políticas estruturais, foram progressivamente desaparecendo, polarizando o discurso político nos extremos, cada vez mais radicalizados» (Goes, 2020). A ideologia deixou de constituir argumento político, a “imagem-entretenimento” (Lipovetsky, 2019) substituiu-a, em prol da «sedução autoelogiosa da forma, em detrimento do conteúdo» (Goes, 2020).

O Sidonismo e a encenação de um “Presidente-Rei” para uma “República Nova”

«A crise política, económica e financeira de 1890-1891 (…) assinalou o início do fim do regime monárquico derrubado pela revolução republicana de 5 de Outubro de 1910»  (Marques, 1986, citado por Nunes, Daniela; Sousa & Sousa, 2020). A crise do sistema liberal português culminou com a sua queda, com o golpe de 28 de maio de 1926, com a instauração da ditadura militar de 1926 e do «Estado Novo» em 1933 (Marques, 1986; citado por Nunes, Daniela; Sousa & Sousa, 2020).

Entre 1917 e 1918 a construção de uma imagem saudosista, envolta num Sebastianismo desejado, levou à legitimação do Sidonismo – de Sidónio Pais – numa tentativa golpista, – com êxito em dezembro de 1917 – de experimentar um modelo presidencialista em Portugal, que mais não era do que, uma ditadura de facto. Sidónio Pais rodeado das multidões populares e aclamado pelos militares, entra triunfante em Lisboa, apresentando-se como o “Presidente-rei” para uma “República Nova” percursora daquilo que viria a ser o Estado Novo (Marques, 1986; Silva, 2006; Ventura, 2013).

Acumulando a Presidência do Ministério e as funções de Ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, com a Presidência da República, legisla um conjunto de decretos “ditatoriais”, prescindindo da consulta do Congresso da República (Marques, 1986; Silva, 2006) incorrendo na inconstitucional dos atos praticados. A 11 de Março de 1918, legisla por decreto estabelecendo o sufrágio universal e direto para a eleição do Presidente da República, a via plebiscitária –  instrumento utilizado para a legitimação das ditaduras – substituía-se à legitimação pelo Congresso da República (Marques, 1986; Silva, 2006; Ventura, 2013).

A marcha de Sidónio Pais do «extremo norte do País ao centro do Poder, em Lisboa» (Ventura, 2013) “mobilizando” a população rural e católica e seduzindo as classes desfavorecidas e desprivilegiadas com a sua proximidade e personalidade carismática (Ventura, 2013), constituiu uma importante campanha de adesão e criação de base eleitoral de apoiantes.

A imagem académica de professor universitário associada à carreira militar (Marques, 1986; Silva, 2006; Ventura, 2013) – a instituição castrense era aquela que reunia um consenso quase unanime pois mantinha a reputação e valores históricos – conferia uma imagem de credibilidade que possibilitava o exercício de uma autoridade moral, supra ao sistema constitucional que tinha ajudado a fundar. Esta credibilização da imagem tem por objetivo a aquisição de uma autoridade moral incontestável, que será sucessivamente utilizada, ao longo de toda a história contemporânea, por inúmeros líderes políticos.

O Salazarismo, a imagética da austeridade e o «discurso da crise»

O Estado Novo, justificado pelo plesbicito à Constituição de 1933, «queria incorporar na vida quotidiana os grandes ideais da nação portuguesa: o paternalismo, o patriotismo, a humildade e a moderação» (Birmingham, 1998, citado por Nunes; Sousa & Sousa, 2020). Naturalmente a ideia de humildade era um equívoco intencional, para justificar a exploração social e económica e a inevitabilidade da pobreza, o que contrastava com as elites (Birmingham, 1998, citado por Nunes; Sousa & Sousa, 2020) republicanas conservadoras e “monárquicos reabilitados”.

Salazar soube através do uso de uma «retórica de invisibilidade» (Torgal, 2010, citando Gil, 1995) realizar a gestão dos seus silêncios, criando a aparência de um «fascismo que nunca existiu» (Torgal, 2010, citando Lourenço, 1976) dissimulando através da sua prática discursiva um modelo de governação que tomava como referência o modelo fascista italiano (Lourenço, 1976; Torgal, 2010). O «discurso de rigor» e de uma «respeitabilidade» construída, poderão ter constituído uma das razões da sobrevivência política do Salazarismo (Torgal, 2010) enquanto estrutura de regime, quer no plano interno como no internacional. Associado a uma hábil diplomacia, Salazar conseguiu perpetuar a sua hegemonia no poder.

Em meados de 1943, o governo de Salazar, começou a aceitar a inevitabilidade das potências do “Eixo” perderem a guerra e receou pela possibilidade dos “Aliados” pretenderem também a queda dos regimes ibéricos, de inspiração fascista (Nunes; Sousa & Sousa, 2020; Rosas & Brito, 1996). A política diplomática recentrou-se na aproximação à Inglaterra e aos Estados Unidos, de modo a garantir que a queda não viria a acontecer (Rosas & Brito, 1996).

A imagem do ditador, constituía por razão de ausência e exceção, uma “imagem-entretenimento” (Lipovetsky, 2019) académica, civil, austera, moral, que tinha por objetivo justificar e sublimar a autoridade, de conceber um país “orgulhosamente só” (Goes, 2020). O Salazarismo foi de facto um regime fascista, um «fascismo catedrático» (Lucena, 1994), mas essencialmente um «fascismo sem movimento fascista» (Lucena, 1994; Torgal, 2009), acumulando no entanto, todas as caraterísticas corporativas, repressivas e de enquadramento de massas (Rosas & Brito, 1996; Rosas, 2019).

Proposta reflexiva

As “imagens-entretenimento” do passado persistem até aos nossos dias, revestidas sob a capa de versões “atualizadas”, como se fosse possível a existência de “fascismos light” e “low profile” ou a coabitação com as sociais-democracias progressistas. Os totalitarismos do século XXI, fascizantes, dispõem dos novos instrumentos de comunicação, «hipermediáticos» (Lipovetsky, 2019) e passam a desempenhar a tarefa demagógica populista, propagandística, talvez mais eficaz do que no passado. Porque munidos  dos instrumentos do marketing político contemporâneo, seduzem com maior eficiência o cidadão-eleitor (Goes, 2020) e são por isso, mais difíceis de combater.

A manutenção de uma prática discursiva, populista que exacerba valores nacionalistas – que determinam um alegado patriotismo –  ao mesmo tempo que impele e justifica o ódio às minorias sociais desprivilegiadas, vem acentuar a fenomenologia racista e xenófoba no seio das sociedades contemporâneas. Racismo e xenofobia passam a ser considerados “males menores” e condição necessária à exclusão social daqueles que são ou sempre foram “os bodes expiatórios” dos problemas da sociedade ao longo dos séculos. Talvez, porque seja mais fácil culpabilizar minorias por um fracasso de um sistema, do que assumir as responsabilidades de uma elite que quer perpetuar-se, influenciar ou chegar ao poder efetivo.

Os totalitarismos ou os «nacionais-populismos» (Tavares, 2020) souberam habilmente manipular as massas, determinando ideologicamente o espaço público e entronizando a imagem-simbólica das suas lideranças. A prática discursiva dos líderes populistas é – sempre foi – extensível aos domínios estéticos da imagem, seduzindo o eleitor (Lipovetsky, 2019). As democracias liberais ao procederem também deste modo, socorrendo-se do marketing comunicacional, perigosamente poderão estar a levar-nos pelo entretenimento acrítico, à despolitização do espaço público (Lipovetsky, 2019) e à assunção de novas autocracias, revestidas de um autoritarismo “light”. As versões “light” e “low profile” da imagem política e da prática discursiva, nas novas ditaduras do entretenimento, têm como objetivo perpetuar as lideranças em cadência e assegurar a manutenção da hegemonia do poder (Goes, 2020).

Outro aspeto que tem vindo a contribuir para o equívoco da entronização das elites, é discurso do meritocrático. Este é tão perigoso quanto ao «discurso da crise» (Torgal, 2010), evocado nas “ditaduras” para exercer o direito de governar os outros. A meritocracia procura se justificar num alegado de dever moral das elites governarem por serem dotadas de uma supremacia intelectual. «As novas ditaduras da imagem questionam e põem em causa o estado de direito democrático e a constituição, porque são legitimadas pelo populismo discursivo mediático, das ruas, dos comentários televisivos e das redes sociais» (Goes, 2020). A comunicação social que outrora fora a vanguarda do combate político, lutando contra a censura é hoje a principal responsável pela afirmação da “ditadura do entretenimento” criando os palcos mediáticos para os novos totalitarismos. «Uma comunicação social cada vez mais determinada pelos grandes grupos económicos e seduzida pelos detentores do poder político» (Goes, 2020).

Por isso, poder-se-á concluir que, de facto «o fascismo não cai do céu aos trambolhões» (Rosas, 2019), antes é o resultado da crise das democracias e do sistema liberal. E desta vez, provavelmente os novos fascismos, controlados por novas elites oligárquicas (Rosas, 2019), tomam partido das novas tecnologias e das redes sociais para maximizarem a mensagem de ódio e xenofobia, levantando o “povo” a levantar novos muros (Goes, 2019).

A nova propaganda política, no contexto da atual sociedade do «capitalismo da sedução» (Lipovetsky, 2019),  pretende evitar o questionamento da inevitabilidade histórica (Debord, 2003) da manutenção de uma estratégia de  desenvolvimento assente na exploração daqueles que foram sempre desprivilegiados e explorados. A época burguesa ao pretender fundar cientificamente a história, assume como ideologia e prática discursiva  o «projeto de posse da história» (Debord, 2003) como condição necessária para a realização do «projeto de superar a economia» capitalista (Debord, 2003).

Torna-se por isso necessário fortalecer o papel da sociedade, para que esta não aceite a inevitabilidade de um qualquer destino histórico (Debord, 2003) deixando se seduzir por uma qualquer elite que a governa. Como se fosse normal a legitimação de um governo através de um ato vassálico feudo-medieval (Goes, 2019).  Uma democracia participativa não pode por isso, ser submissa à hegemonia do dominador sobre o dominado. Porque, os detentores de cargos políticos e em funções públicas, nas Democracias liberais, são representativos da vontade popular e por isso são os “fieis depositários” das opções políticas e da gestão da tributação de todos os cidadãos e contribuintes.

Uma sociedade verdadeiramente democrática, terá de ser necessariamente crítica, com a qualidade das transformações sociais que ocorrem no território, como também exercer o exercício crítico sobre as grandes opções estratégicas de governo, assegurando a irreversibilidade do pacto de “bem governar”, entre governantes e governados. Democracia: crítica, porque necessária. Justa, inclusiva e solidária porque está na sua essência.

Referências

Birmingham, D. (1998). História de Portugal: Uma perspectiva mundial (2.a ed.). Terramar.

Debord, G. (2003). A sociedade do espetáculo. Projeto Periferia. http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf

Goes, D. (2019, Junho 17). Entre os “foguetes” e o poeta. Jornal Económico. https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/entre-os-foguetes-e-o-poeta-455945

Goes, D. (2020, Agosto 12). “Ceci n’est pas”… Democracia: é um simulacro. Jornal Económico. https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/ceci-nest-pas-democracia-e-um-simulacro-623056

Lipovetsky, G. (2019). Agradar e tocar: Ensaio sobre a sociedade da sedução. Edições 70.

Lourenço, E. (1976). O fascismo nunca existiu. D. Quixote.

Lucena, M. de. (1994). Notas para uma teoria dos regimes fascistas. Análise Social, 29(125/126), 9–32. http://www.jstor.org/stable/10.2307/41011048

Marques, A. H. O. (1986). História de Portugal (Vol. III,).

Nunes, Daniela ; Sousa, F. do E., & Sousa, M. A. de; (2020). Estado Novo.

Rosas, F.; Brito, J. M. (1996). Dicionário da história do Estado Novo. Bertrand Editora.

Rosas, F. (2019). Salazar e os Fascismos. Tinta da China Edições.

Silva, A. M. (2006). Sidónio e Sidonismo. Imprensa da Universidade de Coimbra.

Tavares, R. (2020, Julho 3). Os homens-fortes estão fracos, os verdes estão maduros. Público, 44.

Torgal, L. R. (2009). Estados novos, estado novo: ensaios de história política e cultural (Vol. I). Imprensa da Universidade de Coimbra.

Torgal, L. R. (2010). « Crise » e « crises » no discurso de Salazar. Em Estudos do Século XX (Vol. 10, pp. 397–419). Imprensa da Universidade de Coimbra. https://doi.org/http://dx.doi.org/10.14195/1647-8622_10_23

Ventura, V. M. V. (2013). Sidónio Pais e a encenação do poder durante a República Nova. Em Assessment. Universidade de Lisboa.

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