Eu não queria falar sobre o famigerado caso de traição sofrido pela cantora Luísa Sonza, até para não incorrer no mesmo problema apontado por Tati Bernardi em sua coluna. Problema este que a escritora e colunista classificou como “lacração das acadêmicas” [1]. Basicamente, a referida lacração foi o grande volume de análises pretensamente intelectualizadas em torno da traição, da reação da cantora e das repercussões do fato. Nas palavras da colunista:
Por que mulheres com milhares de horas de boas leituras, que frequentaram renomadas universidades, param o que estão fazendo para cometer pequenos mestrados indigestos com pretensões eruditas e sociológicas sobre uma celebridade que foi traída (e que provavelmente está sofrendo, mas vai ganhar uma fortuna com sua exposição sobre o tema)? Fiquei pensando longos dois segundos e concluí: porque muitas acadêmicas lacradoras vivem na mesmíssima mediocridade gananciosa por cliques. Uns chamam de “Bomba, bomba, traída em boteco chora na TV”, e outros de “O patriarcado em um banheiro de bar: Uma análise à luz da ética kantiana e do existencialismo beauvoiriano”.
Parece-me uma constatação pertinente. Mas, contrariando a análise da escritora e a minha própria vontade, tive que me render à repercussão do caso, ainda que deixando passar um pouco o hype, quando percebi que a polêmica envolvendo a cantora é um exemplo de fenômenos sociais maiores. Primeiro, a diluição da fronteira entre o público e o privado, certamente reforçada pela popularidade crescente das redes sociais nos últimos anos. Segundo, uma outra diluição, que parece ter acelerado nesse mesmo contexto das novas mídias, que é a diluição entre o político e o pessoal. É sobre isso — a relação cada vez mais misturada entre pessoal e político — que quero falar na verdade. E não propriamente sobre uma traição em banheiro de bar.
Recapitulando para aqueles que não acompanharam o caso, a cantora Luísa Sonza teria recebido mensagens de fãs denunciando que seu então namorado a traia em um bar do Rio de Janeiro. A reação da cantora foi publicizar o término do relacionamento no programa televisivo de Ana Maria Braga, na Globo, com direito a “textão” [2]. Antes de iniciar a leitura de seu texto, a cantora ressaltou que o texto não era somente sobre ela, “mas sobre tudo que eu vi desde criança e o lugar que isso pega em mim“.
Ou seja, Sonza partiu de seu drama pessoal para falar em nome das mulheres em geral e criticar certo comportamento masculino: “Hoje vocês não vencem. Hoje eu quebro um ciclo pela minha mãe, por minhas tias, e por todas as mulheres que eu vi minha vida inteira sendo traídas.”
Marketing à parte — e o marketing não deve ser desconsiderado em casos como este envolvendo celebridades extremamente midiáticas [3] — ao transformar a traição em um texto-manifesto em cadeia nacional, Luísa Sonza faz de seu drama pessoal um ato político em nome de uma coletividade. O texto teve a pretensão de ser não só sobre a cantora, mas sobre a sua mãe, a sua tia e todas as mulheres. Assim, Sonza se apropria de uma pauta pública e a mistura com seu drama pessoal. É preciso, no entanto, considerar que essa estratégia tem riscos. Vou citar aqui dois problemas e seus respectivos exemplos.
O primeiro problema é que assim que a cantora cometer qualquer vacilo em sua vida pessoal (e todos nós estamos sujeitos a deslizes), grande parte da opinião pública vai usar o vacilo pessoal dela para desqualificar a pauta pública a qual ela vinculou seu drama. Um bom exemplo recente foi o da atriz Amber Heard, ex do ator Johnny Depp. Inicialmente, a atriz se colocou como um símbolo das mulheres vítimas de violência doméstica. Mas na medida em que o ator conseguiu reverter o litígio perante a Justiça, que se convenceu que houve manipulação da parte de Heard, o desgaste não pesou apenas contra a pessoa da atriz, mas contra a pauta em geral. Pauta legítima, aliás. Vale a pena assistir a série documental da Netflix chamada “Johnny Depp x Amber Heard”, que conta essa história em três episódios [4].
Outro problema é que vento que venta lá venta cá. Se o pessoal é político para você, também será para muitas outras pessoas, com as pautas das mais diversas, algumas, inclusive, divergentes das suas. Um exemplo é o movimento red pill. Muitos dos homens que aderem a tais círculos o fazem por conta de dramas pessoais, como rejeição ou relacionamentos conturbados. Dramas normais do cotidiano e, muitas das vezes, legítimos (não é vergonha sofrer por causa de rejeição, traição e coração partido). O problema é que de um papo de bar com fins de desabafo para análises sociológicas equivocadas é um pulo. E atualmente já é possível ver nesses círculos, por exemplo, uma campanha de descrédito da Lei Maria da Penha, culpabilizando a vítima que dá nome a lei. Os adeptos desses grupos também estão partindo do pessoal para o político e aderindo a ideias bastante perigosas.
É possível que questões ligadas à sexualidade sejam um fator de arregimentação política e, a partir delas, os indivíduos assimilem outras ideias e posicionamentos que os consolidam em um espectro político, seja à esquerda ou à direita. O jornalista Cesar Baima escreveu um artigo sobre o que chamou de “paradoxo do contágio ideológico” [5], uma tendência que as pessoas têm de, pouco a pouco, irem assimilando ideias que as consolidam numa determinada tribo política. Baima explica:
Para ser um suposto “conservador” ou “de direita” não basta mais defender o liberalismo econômico e o Estado mínimo, entre outras pautas típicas relacionadas a esta vertente de opinião. Para muitos, é preciso também ser antivacina, antiglobalista, negar as mudanças climáticas, duvidar da lisura dos processos eleitorais e aderir a teorias conspiratórias como estas e outras que também passaram a ser associadas a esta posição política.
Não que o outro lado do espectro partidário esteja livre do mesmo problema. Hoje, para ser um legítimo “progressista” ou “de esquerda”, muitas vezes também não é suficiente apoiar o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária, com inclusão econômica e social, e um papel ativo do Estado na economia. É preciso também aderir a um estilo de vida “natureba”, a favor de produtos orgânicos e contra o uso de agrotóxicos e organismos geneticamente modificados (OGMs), e ter uma — ou mais — “pseudociência” do coração, como homeopatia, Reiki, Constelação Familiar ou qualquer outra das muitas chamadas “práticas integrativas e complementares” (PICs) na saúde.
Baima apresenta pesquisas e hipóteses sobre o fenômeno “em que identidades políticas se expandem para incluir cada vez mais pautas e crenças ‘requeridas’ dos sócios de carteirinha”. É por esse contágio ideológico que as identidades políticas são consolidadas. E pensar que questões pessoais e íntimas de nossas vidas possam ter papel preponderante na consolidação de nossas posições políticas é algo que deve nos ajudar a ser mais alertas e autocríticos. Afinal, será que faz sentido, por exemplo, você abraçar algum revisionismo ideológico histórico equivocado só porque você é homem? Vamos supor que por conta de alguns dissabores pessoais em seu histórico de relacionamento com mulheres, você, homem, hoje em dia acredite e defenda publicamente que o regime nazista foi baseado em uma doutrina política de esquerda.
É uma conjectura de minha parte que soa absurda, parece não fazer o menor sentido, algo sem conexão alguma. Mas em uma de minhas pesquisas, na qual investiguei quem são as pessoas que afirmam que o nazismo foi um movimento de esquerda (contrariando a bibliografia canônica da história e da ciência política, que demonstra que o nazismo foi de extrema-direita), para a minha surpresa (mas não muita), identifiquei que a maioria esmagadora daqueles que fazem tal afirmação revisionista equivocada é de homens [6].
Era de se esperar que a composição desse grupo de pessoas fosse predominantemente de adeptos da direita política (o que se confirmou) e, mais especificamente, de bolsonaristas (o que também se confirmou), mas o inusitado, que saltou aos olhos pela superioridade numérica, foi a questão do gênero masculino.
Se pensarmos racionalmente, não faz nenhum sentido que homens sejam mais propensos a acreditar erroneamente que o nazismo foi de esquerda, mas a política não é um campo tão racional assim. Adotamos certas ideias por conta de afetos, subjetividades, razões inconfessáveis. Gostamos de nos ver como racionais, mas não somos bem assim. A parcela de racionalidade na política deve ser mantida ou ampliada por meio de um esforço contínuo da nossa parte que envolva autocrítica e autoconhecimento.
Quem pesquisa os movimentos conservadores, reacionários, de direita e extrema direita pelo mundo sabe que a sexualidade e o machismo têm um peso forte na consolidação desses grupos políticos. Para o sociólogo Michael Lowy, “em todos os países, seja na Europa, nos Estados Unidos, ou no Brasil, a extrema-direita racista, autoritária, ou fascista é predominantemente masculina” [7]. Somando isso aos usos políticos do passado enquanto ferramenta importante para as narrativas de grupos políticos, começamos a puxar um fio sociopolítico que nos faz entender por que, dentre aqueles que repetem o revisionismo ideológico de que o nazismo foi um movimento de esquerda, a esmagadora maioria é formada por direitistas e homens.
Fazer esse tipo de reflexão nos torna mais atentos sobre o quanto nossas frustrações e angústias, muitas das vezes de cunho predominantemente pessoal, podem estar a nos direcionar para essa ou aquela ideia. Essa tomada de consciência deve nos ajudar a estabelecer alguma divisória entre o político e o pessoal. Mesmo que a separação nunca possa ser totalmente precisa.
Desde muitos anos é comum ouvir gente bradando que o pessoal também é político. Está correto. Mas hoje em dia, mais do que nunca, é preciso refletir sobre essa mistura e pensar alguns limites a respeito, porque quando a mistura se dá por completo, sem perceber a gente passa a decidir eleições de gestores públicos com base em chifre que sofremos nas relações afetivas. Nossas subjetividades pessoais nem sempre são boas conselheiras nos engajamentos políticos.
Referências:
[1] A traição do ator, a sofrência da atriz e a lacração das acadêmicas
[2] Leia texto completo de Luísa Sonza sobre término com Chico Moedas
[3] Luísa Sonza e Chico Moedas: como desabafos públicos de celebridades podem ser um bom negócio
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnkgkzkz802o
[4] Johnny Depp x Amber Heard
https://www.netflix.com/br/title/81644798
[5] O paradoxo do contágio ideológico à esquerda e à direita
[6] CAMPOS, Alexandre Freitas. “Nazismo de esquerda”: análise de uma fake history a partir de vídeo da embaixada e consulado alemães. In: 44º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2021. Disponível em: https://www.portalintercom.org.br/anais/nacional2021/resumos/dt5-cd/alexandre-freitas-campos.pdf?fbclid=IwAR0JhS6Cl6AqPXNrR6zc3pkXK3C7zt937R_OefBOJm77tmeSUDkKNauifas
[7] É a frustração masculina que decide os rumos políticos do Brasil hoje