“A cãibra do Gageiro” diz o J. C. Ary dos Santos em seu poema ‘A máquina fotográfica’, ao falar das imagens, era o homem do cesto a ter cãibras, mas era também o Eduardo. Agora a caminho dos 90 anos.
Há sempre um não sei que de ternura
De aconchego intemporal
Mesmo na mais jornalística das fotos
Ninguém tira, ninguém a cura
Desta inocência de Portugal
Porém não é só que exista
É preciso vê-la, é preciso senti-la
É preciso percebe-la
É preciso que
Da confusão da cidade surja cena que persista
Situação que por si fale, que insista
Em vir habitar na verdade do artista
E que este ouça o chamado
Ouça seu canto de sereia alvissareira
A perguntar: Ninguém me vê?
Revela-me ao mundo
Porque eu só existirei através de ti
Então íntima, evoca-o
Em verdade convoca-o com seu cantochão
Não duvidem meus senhores, não duvidem
São cantigas meus senhores, são cantigas
São antigas meus senhores, são antigas
Eternas é que são
Fazem-se em momento – Click!
O que deste toque de eternidade
Surge inconsciente e instrumental
Rompendo a fronteira, tornando obra d’arte
O que antes era documental
(Já que tudo é documento.)
E nesta relação do momentâneo
Com o amor eterno
Concita-nos a uma outra realidade
Concertando o crepúsculo, a luz da manhã
A neblina, o Sol a derramar-se em locais inesperados
E demais criaturas em séculos errados
XIX no XX, XVIII no XIX, e estes três no XXI
Tudo a dizer: ‘Va disparaître’
Parece incrível e não à toa
Para quem não viveu em Montparnasse
Mas em Lisboa
Man Ray sem surrealismo
Bill Brant sem justaposição
Rotchenko sem mentiras ou montagens, mas com lirismo
Eugene Atget para além da pura transição
Transposição: Que distância há entre documento e obra de . arte?
Afinal são estas fotos documentos com alma de obra d’arte?
Ou transliteração: Obras de arte com almas de documentos?
A verdade é que estão fora de contexto
E o tempo faz de nós surrealistas
Cheio de coisas que nós encontramos a pretexto
E que ninguém sabe o que é, e nem se arrisca
Com fé recrudescente transforma o sim em não
O que faz o observador jogar com a sua própria percepção
Fazendo o eterno parecer passageiro
E o passageiro cristalizar-se com escrutínio
De influenciar a forma como vemos o mundo
Na transformação absoluta daquele segundo
(Ou antes ou depois do clique.)
E o que era brega ficou chique
E o que não existia, agora existe
Tinha lá que se chamar Gageiro
Nisto não poderia haver calma
Em se admitir outro patronímico
Já que aos ‘gajos’ por inteiro
Captura-os em seu domínio
Fotografando-lhes a alma
Ademais para o bem e para o mal
Com o silêncio do inquisidor
Ao evocar a relação das pessoas
Expõe em abundância de detalhes
Onde qualquer um é ator
Onde as cenas são meras situações à-toa
Onde os corpos que lá estão são figuras-encalhes
De um maremoto imenso e excepcional
Que permanecem e não há quem as cale
Sander, Evans, Britan, Relvas, Mesteri
Mistério de criar um vínculo que ativa
Um traço de coisa boa
Gageiro desfez o tempo e a perspectiva
Ao trazer a cena pra Lisboa
Que tudo individualiza
Talvez pela situação ocidental
De tudo que de bom e de mau
A luz eterniza
Porém o perceptível é defeito
Porque o que realmente lá está não é visível
Já que dele não faz caso
Este fotografo de essências
O que se vê são promessas, são experiências
Composições para fotografar a existência
Do que não é verdadeiramente tangível
Tudo mera antevisão
Do que realmente lá está
E Gageiro capturou o invisível
O tempo, dardo deste poeta da luz
De nome Eduardo, bardo que a ela tudo reduz
Fazendo do infinito o momento
E nos deixa o desalento
De perguntarmos: E depois?
O que não tem resposta
Respondido está – a cada um sua palma!
E segue sem pressa, nas calmas
Fotografando almas.
Antológicas página 77 e ss.