No filme de 1984, The Evil That Men Do, de J. Lee Thompson, Charles Bronson é Holland, um vingador que enfrenta Molloch (Joseph Maher), um médico especialista em tortura e que assassina Hidalgo (Jorge H. Robles), um jornalista amigo de Holland. Vinte e quatro anos depois, em Batman: O Cavaleiro das Trevas, outro vingador (Christian Bale) intenta contrariar os planos de Coringa, um vilão psicopata do universo da DC Comics, representado pelo malogrado Heath Ledger, e relativamente ao qual o mordomo (Michael Caine) de Bruce Wayne/Batman declara que “some men just want to watch the world burn”.
A filmografia americana é conhecida pela sua aceção binária do mundo, identificando e separando claramente os bons dos maus, e reduzindo o drama humano a uma eterna luta entre o Bem e o Mal. De igual modo, termina as películas com desfechos felizes, com os bons a vencerem, e os maus a perderem. Desejam-se espetadores satisfeitos e sonhadores, por perceberem que há justiça no mundo, e que continuem a acreditar nas seduções da Terra do Nunca. Ou da de Oz.
Estimado leitor, este é o momento em que deve decidir qual a pastilha a tomar: a azul ou a vermelha. Se optar pela azul, então aceita que a visão binária se estende ao mundo para além dos filmes, que as pessoas se dividem entre boas e más, e que no final os primeiros ganham o céu, enquanto os segundos são deportados para o inferno. Deverá parar de ler este texto agora, e olvidar o que leu atrás. Pratique o bem; e boa sorte! Mas se tomar a pastilha vermelha, então deverá preparar-se para ler o restante do texto, que aborda uma das aceções mais sombrias da liderança, e discute a normalidade da maldade humana nas organizações.
Se chegou a este parágrafo é porque a sua decisão foi a de tomar a pastilha vermelha. Avancemos, pois, definindo primeiro liderança: para Yukl (1994), trata-se de um processo em que um indivíduo influencia outros na sua interpretação da realidade, na definição de objetivos e organização de atividades, na sua motivação e empenho, na definição das relações entre pessoas no grupo, e na negociação com sujeitos exteriores ao grupo ou organização. A liderança é, assim, um exercício diário de relacionamento entre pessoas, em que uma delas tem a capacidade, o poder, e/ou o dever de afetar a construção de sentido e de propósito dos restantes membros do grupo.
Na visão cinematográfica do tema, os líderes são fontes de inspiração (e.g. Keating), defensores de causas (e.g. Brockovich), transformadores de pessoas (e.g. Carter), ou mestres em resolver crises (e.g. Sully). Na ciência, a liderança também tem sido romantizada, enaltecendo-se o papel do líder na elevação dos destinos de grupos, organizações, e nações. Na última década, todavia, tem-se pesquisado o lado negro da liderança, também designado liderança tóxica, que descreve aqueles que exercem o seu poder de influência de modo abusivo e distópico. No livro Leadership BS, de 2015, Jeffrey Pfeffer defende, com estatísticas e exemplos, que o mundo está cheio de locais de trabalho disfuncionais e tirânicos, plenos de stress e de ambientes em que domina a opressão e a angústia, e em que as palavras “democracia”, “cooperação”, e “pessoas” não são mais do que meras miragens em vastos desertos de humanidade. Pfeffer alega ainda que o narcisismo, a imodéstia e a ausência de empatia, podem ser atributos determinantes para se dominar grupos e multidões.
Ora, a julgar por um recente relatório da consultora Life Meets Work (Detoxifying your Culture and Encouraging More Mindful Leadership, 2017), Pfeffer parece ter razão: 56% dos respondentes numa amostra de mil trabalhadores nos EUA revelou ter líderes tóxicos e, ainda mais desconcertante, 68% dos que reportam a tais líderes, estão comprometidos com as suas organizações, face a apenas 35% dos que trabalham com líderes não tóxicos! Não há surpresas no resto do relatório: a liderança tóxica propicia a intenção de saída, assim como o conflito trabalho-família. Mas parece demonstrar-se que tal tipo de liderança pode conduzir a resultados cobiçados pelas organizações!
A moralidade de desejar líderes virtuosos contrasta drasticamente com a frequência com que se observam líderes destruidores nas organizações modernas. A realidade mostra que muitos estimulam e constroem ambientes venenosos, e que, sem ser por acaso, têm sucesso! Este tipo de liderança explica-se por uma confluência de fatores:
1) traços especiais na natureza do ser humano, como observado na personagem Zé Pequeno, em a Cidade de Deus;
2) envolventes e culturas organizacionais que legitimam os sistemas predatórios da alma humana, como mostrado no filme francês de 2017, Corporate;
3) grupos de seguidores que dependem, usufruem, ou reforçam, o estado das coisas, como revelado na célebre trilogia de Coppola; e
4) lógicas e paradigmas sociológicos e económicos que espicaçam espirais de atropelo moral e ético, como historiado em The Wizard of Lies, sobre o caso Madoff.
Importa agora refletir sobre a primeira condição atrás enunciada: os traços individuais da liderança destrutiva. Num livro perturbante de Julia Shaw, intitulado Evil: The Science Behind Humanity’s Dark Side, a psicóloga evoca trabalhos de Paulhus, para introduzir quatro traços de personalidade socialmente associados à maldade: psicopatia, sadismo, narcisismo, e maquiavelismo. Cada um destes traços da dark tetrad, nota a autora, distribui-se em algum grau em toda a gente, tal como se distribuem a inteligência e a capacidade criativa. Ora, tal como ter uma elevada capacidade criativa não significa que se seja profusamente criativo, também ter uma propensão psicótica não significa que se exibam condutas anti-sociais extremas (uma das características da psicopatia). Quer apenas dizer que algumas pessoas, com mais probabilidade: exibem charme enganador, mentem, não sentem remorsos, são egocêntricas, e não têm empatia (outras características da psicopatia).
Shaw propõe não apenas que todas as pessoas têm um pouco de tudo, mas também que estes traços podem trazer benefícios, tal como referido por Pfeffer. As experiências de Milgram e de Zimbardo, nos anos 60 e 70, haviam já mostrado o potencial humano para infligir o mal.
Em suma, parece ser razoável admitir, por muito que seja socialmente indesejável e individualmente inadmissível, que as pessoas encerram em si a capacidade para fazer quer o bem, quer o mal. Quando numa função de liderança, esse potencial estende-se a indivíduos isolados e a grupos dentro e fora da organização. E perante as condições certas, alguns que historicamente sempre praticaram o bem, podem cometer atos hediondos, enquanto outros que nunca foram virtuosos, podem revelar um altruísmo extraordinário.
Este texto não é uma apologia da maldade humana. Sustentou, isso sim, que em todos existe o potencial para o mal – tal como para o bem! Mas discutir atos deletérios nas organizações, sem entender a complexidade do fenómeno, é pensar de forma rígida, estática e prescritiva, e esquecer que, como em Glass, há heróis com um pouco de vilão, e vilões com um pouco de herói; e depois há o resto das pessoas, que têm um pouco de ambos.