“Um avião desenhado por palhaços, que por sua vez são chefiados por macacos”. Este é um dos comentários registados em email, e usados pela Federal Aviation Authority no âmbito da investigação levada a cabo para compreender os problemas de conceção e desenvolvimento do Boeing 737 MAX, e cujas consequências mais gravosas foram as quedas dos voos Lion Air 610 e Ethiopian Airlnes 302. O primeiro acidente, da companhia indonésia, ocorreu em outubro de 2018 e vitimou 189 pessoas, enquanto o avião etíope caiu em 10 de março do ano seguinte, matando todos os 157 ocupantes a bordo. Mais recentemente, no final de 2019, o CEO da Boeing, Dennis Muilenburg, seria substituído por David L. Calhoun, após um annus horribilis para a empresa: as ações caíram 20%, os quase 500 aparelhos de 50 clientes no mundo estão impedidos de voar, a produção do MAX foi parada, as companhias aéreas suspenderam pagamentos e exigem explicações e garantias, e a empresa perdeu o primeiro lugar mundial para a Airbus.
E isto pode ser apenas o princípio de uma crise maior! Várias questões permanecem sem resposta: como é que os reguladores atribuíram a certificação do MAX? Como é que a Boeing continua a operar, apesar das dívidas acumuladas de duas décadas, devidas ao MAX mas também ao 787 Dreamliner? Que jogos de forças existem entre a estrutura de governança da Boeing e os lobbies financeiro-políticos norte-americanos? Quando se analisam algumas das muitas centenas de peças jornalísticas publicadas sobre o caso, emergem com frequência as referências a outros gigantes caídos em desgraça, como a Enron e a Goldman Sachs.
Os problemas técnicos do avião foram sobejamente dissecados nos media durante 2019, mas apenas com as mensagens de email se percebem outras razões que explicam o sucedido. E aparentemente um dos maiores problemas é a “cultura corporativa estragada”, conforme sugere um dos títulos do The New York Times, de 10 de janeiro: “‘I honestly don’t trust many people at Boeing’: A broken culture exposed”.
Como é que uma cultura corporativa se pode estragar é uma noção que desafia a mais esclarecida das cabeças. A página da Boeing mostra os seus 7 valores: qualidade, segurança, integridade, diversidade e inclusão, cidadania corporativa, confiança e respeito, e sucesso para os grupos de interessados (clientes, empregados, investidores, fornecedores e comunidades). Ora, uma cultura estragada significa que estes valores podem não estar a ser vividos na Boeing. O que leva a equacionar quais serão os verdadeiros valores que norteiam os empregados da companhia?
As 117 páginas dos emails trocados entre funcionários da Boeing cobrem de fevereiro de 2013 a junho de 2018, e permitem levantar o véu sobre os valores ocultos que compõem a cultura da empresa. Poderá alegar-se que as mensagens estão retirados de contexto, e que muitos conteúdos e estilos das comunicações não diferem de milhares de tantas outras, mas o que pensar quando alguém escreve “temos uma equipa sénior de gestão que percebe pouco do negócio”? (p. 114, 01/06/2018). Ou um outro que regista: “Deixarias a tua família entrar num avião que usou o simulador de treino do MAX? – Eu não”? (p. 112, 08/02/2018). Ou, por fim: “e o DCGA na Índia é ainda mais estúpido”? (p. 76, 12/12/2017; o DGCA é a reguladora indiana para a aviação civil).
Estes três exemplos, juntamente com o da abertura (p. 84, 26/04/2017), revelam uma cultura de pouca confiança e respeito pelas lideranças, de descuido pela segurança, e de fraca consideração pelas entidades reguladoras. Ou seja, muito longe dos valores expostos na página da companhia. Nas próximas semanas e meses caberá às entidades competentes confirmar estas suspeitas, mas não será de estranhar que as conclusões apontem para uma diferença substancial entre os valores expostos/declarados, e os ocultos/vividos. Nem será surpresa a influência que a liderança e os seus próprios valores exercem na construção e reconstrução da matriz cultural de uma organização. E, a respeito destes assuntos, certamente surgirão outras análises mais profundas, estabelecendo paralelismos e relembrando tragédias antigas. Um exemplo clássico é o incêndio florestal de Mann Gulch (1949), em que morreram 13 bombeiros, e que foi magistralmente analisado por K. Weick (um cientista social) em 1993. Os desastres da central nuclear de Chernobyl (1986), e do vaivém Columbia (2003), também evocam causas enraizadas na cultura e na liderança das organizações.
A concluir, importa realçar três aspetos. O primeiro é que as mensagens de email podem não refletir os valores da totalidade dos 150 mil trabalhadores da Boeing. As mensagens e o que elas mostram indiciam problemas sérios, mas um par de maçãs podres não significa que todas as maçãs no caixote estejam estragadas. Ainda assim, deverá sublinhar-se uma realidade que é amiúde desconsiderada pelas lideranças das empresas: os valores que uma organização tão orgulhosamente intenta tornar visíveis, podem não ser os mesmos que guiam os seus funcionários. Não basta expor na página da companhia um belo naipe de termos como “eficiência”, “respeito”, ou “confiança”. É necessário viver e sentir a eficiência, o respeito e a confiança, e dar o exemplo de como os viver e sentir.
O segundo aspeto que começa a emergir das análises publicadas é que parecia existir um esforço coordenado por parte de muitos departamentos da construtora, para persuadir a FAA de que o MAX não requeria um treino tão intensivo e extensivo como o exigido pelo regulador. A expressão “truques mentais de Jedi” é usada oito vezes nas mensagens, por diferentes pessoas, para referir a influência exercida pelos reguladores no sentido de relaxar os requisitos de treino de pilotos no MAX. Ora, uma das causas diretas de ambos os acidentes foi a falta de preparação e treino dos pilotos e co-pilotos em lidar com o funcionamento inopinado do novo sistema de controlo de voo no MAX.
E o terceiro aspeto está relacionado com a vinda a público das mensagens dos trabalhadores da Boeing. Que a FAA deva ter acesso às comunicações que ajudam a reconstruir os eventos que conduziram às quedas das aeronaves, é compreensível. Mas que o resto do mundo possa ler o documento na íntegra, é algo mais difícil de entender. Os emails foram revelados pela própria Boeing, depois de apagar todos os elementos que pudessem identificar quem os enviou. Numa primeira impressão, expor as comunicações internas a todos revela vontade de colaborar com as investigações, assim como de um assumir público de mea culpa. Mas numa segunda impressão, poderá pensar-se numa caça interna às bruxas e desejo de isolar e punir os autores das mensagens. Relacionado com isto, as recentes notícias do despedimento de 2.800 empregados de um dos principais fornecedores da Boeing, enquanto Dennis Muilenburg deixava a companhia com um pacote de 62 milhões de dólares em ações e esquemas de pensões, pode sugerir que não é apenas a cultura da Boeing que está estragada.
Uma resposta
Queira Deus que as coisas mudem rapidamente, pois com a aquisição da Embraer pela Boeing, muitas centenas de trabalhadores em Portugal estão dependentes dessa gestão.