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O Tempo do Cuidar: Profissionais Exaustos, Idosos Invisíveis

O Tempo do Cuidar: Profissionais Exaustos, Idosos Invisíveis

Num cenário europeu marcado pelo envelhecimento populacional e por serviços de saúde em constante sobressalto, os profissionais de saúde enfrentam exaustão crónica enquanto os idosos permanecem, muitas vezes, nas margens do cuidado digno. Este artigo analisa criticamente a crise silenciosa da sobrecarga profissional e da invisibilidade geriátrica, propondo a valorização dos cuidados continuados, o reforço da enfermagem especializada e uma reorganização estrutural que devolva humanidade e equidade ao sistema. A Enfermagem de Reabilitação é aqui destacada como um agente-chave na construção de respostas sustentáveis, integradas e centradas nas necessidades da população mais envelhecida e vulnerável. A Europa envelhece a um ritmo sem precedentes. Em Portugal, mais de 23% da população tem 65 anos ou mais (INE, 2024). Este fenómeno demográfico exige respostas sociais e sanitárias adequadas, mas o sistema de saúde, assoberbado por urgências, escassez de profissionais e pressões económicas, muitas vezes falha em responder com humanidade e continuidade. Paralelamente, os profissionais que deveriam cuidar enfrentam níveis preocupantes de esgotamento físico e emocional (OECD, 2024). Defende-se que há uma dupla crise em curso: a do cuidar sem tempo e a da existência silenciosa dos idosos. Uma crise que exige mais do que reformas técnicas — pede uma transformação ética, política e relacional do modo como cuidamos dos que envelhecem e dos que cuidam. A sobrecarga dos profissionais de saúde, particularmente da enfermagem, tem sido amplamente documentada. Segundo o estudo europeu HSR-Workforce (2024), mais de 65% dos enfermeiros referem sintomas de burnout, e 38% consideram abandonar a profissão nos próximos cinco anos. Em Portugal, a situação é agravada por carências crónicas de recursos humanos e por uma elevada taxa de absentismo por doença mental (DGS, 2024). Em paralelo, a literatura aponta para a invisibilidade estrutural da população idosa, sobretudo dos mais frágeis e dependentes. Segundo Lopes & Mendes (2023), o modelo biomédico ainda vigente tende a negligenciar as dimensões psicossociais, relacionais e existenciais do envelhecimento. A ausência de tempo, a rotatividade dos cuidadores e a fragmentação dos serviços contribuem para a desumanização do cuidado. A investigação também revela que o investimento em equipas multidisciplinares, com forte presença de enfermeiros de reabilitação, pode reduzir hospitalizações evitáveis, melhorar a funcionalidade dos idosos e aliviar a pressão sobre os serviços de urgência (WHO, 2023; Pereira & Almeida, 2024). O ritmo imposto aos profissionais de saúde não favorece o cuidado com presença, escuta e atenção. Segundo Ferreira et al. (2024), a prática de enfermagem tornou-se mecanizada, reduzida a procedimentos e registos. A ausência de tempo qualitativo para interagir com os utentes não só compromete a relação terapêutica como aumenta o erro clínico. Este “cuidar apressado” é um paradoxo trágico: quanto mais urgente torna-se o cuidado, menos tempo há para o exercer com profundidade. Para os idosos, que necessitam de abordagens lentas, compreensivas e reabilitadoras, este modelo representa uma ameaça à dignidade. A invisibilidade dos idosos manifesta-se em múltiplas formas: na falta de acompanhamento pós-alta, na rotatividade de cuidadores, na medicalização excessiva e na escassez de projetos de vida após os 80 anos. Como referem Santos & Duarte (2023), muitos idosos vivem em instituições onde o cuidado limita-se à higiene e à medicação, sem estímulo cognitivo ou emocional. A inexistência de equipas de reabilitação domiciliária em várias regiões agrava a perda de funcionalidade e perpetua a hospitalização evitável. A invisibilidade é, também, epistemológica: os idosos quase não participam na construção das políticas que os afetam. A Enfermagem de Reabilitação propõe um modelo alternativo: centrado na pessoa, no contexto e nas potencialidades. Como destacam Oliveira & Matos (2024), o enfermeiro de reabilitação não cuida apenas da doença, mas da capacidade funcional, da autonomia e do projeto de vida da pessoa idosa. Este profissional é essencial na transição de cuidados, na prevenção de complicações e na redução da dependência. Atua em hospitais, centros de saúde, instituições e domicílios, promovendo planos personalizados que incluem exercícios, estimulação cognitiva, treino de autocuidado e apoio à família. A intervenção alivia a pressão sobre os serviços de urgência, reduz readmissões e oferece aos idosos uma nova centralidade no seu próprio processo de cuidar e ser cuidado. A resposta à crise do cuidar exige coragem política, visão estratégica e envolvimento intersectorial. Algumas propostas viáveis incluem: valorização institucional do tempo relacional nos cuidados, integrando indicadores de qualidade que avaliem a dimensão humana do cuidar; reforço dos cuidados continuados e da reabilitação domiciliária, com equipas multiprofissionais geridas localmente; contratação e retenção de enfermeiros especialistas, com incentivos em regiões carenciadas; criação de redes de apoio ao cuidador formal e informal, incluindo acompanhamento psicológico e formação; participação ativa dos idosos na definição dos seus planos de cuidados, com base em modelos de co-gestão e autonomia progressiva. O atual sistema de saúde não está apenas exausto — está desalinhado com as necessidades de uma população envelhecida. Enquanto os profissionais fragmentam-se entre turnos e tarefas, os idosos tornam-se números, camas, prescrições. Mas o cuidado não nasce da pressa — nasce do encontro. A enfermagem, particularmente a enfermagem de reabilitação, tem nas mãos a possibilidade de reencontro entre tempo, cuidado e dignidade. Urge recuperar o sentido do cuidar como prática relacional, política e poética. Cuidar é mais do que tratar: é ver, escutar e permanecer. Neste tempo em que todos correm, que o cuidar desacelere. Que os profissionais sejam respeitados. Que os idosos voltem a ser visíveis. Porque o tempo que falta é, na verdade, o tempo que mais importa.

Referências Bibliográficas

Baptista, L., Costa, H., & Ramos, M. (2023). Invisibilidade geriátrica e crise do cuidar. Saúde e Sociedade, 32(2), 87–98.

Creswell, J. W., & Plano Clark, V. L. (2022). Designing and Conducting Mixed Methods Research. SAGE.

DGS – Direção-Geral da Saúde. (2024). Relatório Anual de Indicadores de Saúde e Profissionais. Lisboa: DGS.

Ferreira, S., Tavares, P., & Nogueira, D. (2024). Burnout na enfermagem hospitalar: causas e consequências. Revista de Gestão em Saúde, 12(1), 45–59.

INE – Instituto Nacional de Estatística. (2024). Envelhecimento da População Portuguesa.

Lopes, R., & Mendes, A. (2023). Cuidados centrados na pessoa idosa: do ideal à prática. Revista Portuguesa de Enfermagem, 40(3), 123–135.

OECD – Organisation for Economic Co-operation and Development. (2024). Health at a Glance: Europe 2024. Paris: OECD Publishing.

Oliveira, C., & Matos, F. (2024). A enfermagem de reabilitação e o envelhecimento ativo. Cadernos de Enfermagem Avançada, 11(1), 15–26.

Pereira, T., & Almeida, S. (2024). Modelos integrados de cuidados continuados: resultados e desafios. Revista de Saúde Comunitária, 28(2), 101–114.

Santos, D., & Duarte, I. (2023). Institucionalização de idosos e perda de identidade. Revista Psicologia & Sociedade, 35(1), 89–104.

WHO – World Health Organization. (2023). Integrated Care for Older People: Guidelines on Community-Level Interventions. Geneva: WHO.

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