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O Estatuto do Cuidador Informal: quo vadis?

O Estatuto do Cuidador Informal: quo vadis?

A. Breve Enquadramento

É um facto incontestável que a população portuguesa se encontra claramente envelhecida. Dizemo-lo sem qualquer propósito de menosprezar as mais vastas conquistas ao nível de políticas de saúde, no mundo moderno e que propiciaram o paradigma do envelhecimento ativo e saudável. Todavia, tal paradigma comporta distintos desafios intimamente relacionados, desde logo, com a situação de dependência face a terceiro que o envelhecimento, salvo raras exceções, demanda. 

Com efeito, segundo dados extraídos do INE, entre 2018 e 2080, de acordo com o cenário central de projeção, Portugal perderá população dos atuais 10,3 para 8,2 milhões de habitantes, sendo que, o número de jovens diminuirá de 1,4 para 1,0 milhões. O número de idosos (com 65 anos ou mais) passará de 2,2 para 3,0 milhões, o índice de envelhecimento em Portugal quase que duplicará, passando de 159 para 300 idosos por cada 100 jovens, em 2080. A região mais envelhecida será, por curiosidade, a Região Autónoma da Madeira, com este índice a atingir os 429 idosos por cada 100 jovens, ao passo que a região menos envelhecida será o Algarve, com um índice de 204(1).

Pois bem, uma das principais dimensões da panóplia de desafios colocados pelo aumento da população envelhecida reside na (in) suficiência ou (in) adequação das ferramentas colocadas à disposição das famílias, qual centro de assistência primário, permitindo que estas prestem o melhor nível de cuidados possíveis aos seus dependentes. Referimo-nos, desde logo, ao papel que a sociedade pretende reconhecer aos designados «cuidadores informais».

De acordo com um inquérito nacional levado a cabo pela Associação Nacional de Cuidadores Informais, divulgado em novembro de 2020, o número de cuidadores informais, em Portugal, deverá rondar os 1,4 milhões de pessoas. Este robusto número deve-se, em grande medida, aos efeitos da pandemia COVID-19, que acarretou o encerramento das instituições de cariz social e de cuidados de saúde, que realizavam um acompanhamento diário das pessoas cuidadas (p.ex. através de centros de dia).

O caminho começou a ser percorrido em meados de 2016, quando o Governo encetou o processo de reforma dos cuidados continuados integrados, mediante o Despacho n.º 201/2016, e 07/01, de cujo n.º 2, al. f) consta uma especial referência à necessidade de desenvolver estratégias valorizadoras e apoiantes dos cuidadores informais. Seguiram-se várias recomendações da AR constatando a urgência de um maior reconhecimento social e jurídico do contributo dos cuidadores informais para a sociedade, culminando, em outubro de 2016, com a Petição n.º 191/XIII/2.ª, subscrita pelo Grupo de Cuidadores Informais de Doentes de Alzheimer e outras Demências Similares, tendo solicitado, entre outras ações, a criação de um Estatuto do Cuidador Informal.

Foi neste contexto que, pelas mãos da Lei n.º 100/2019, de 06/09, o Estatuto do Cuidador Informal finalmente conheceu a luz do dia (cf. art.º 16.º do diploma preambular. (doravante “ECI”). O principal objetivo deste diploma consiste, nos termos do art.º 1.º do ECI, na regulação dos direitos e deveres do cuidador e da pessoa cuidada, estabelecendo as respetivas medidas de apoio. 

A regulamentação do ECI surgiu, somente, em 2020, através da Portaria n.º 2/2020, de 10/01, a qual veio regulamentar os termos do reconhecimento e manutenção do ECI.

Por sua vez, a Portaria n.º 64/2020, de 10/03 veio definir os termos e as condições de implementação dos projetos-pilotos previstos no ECI, bem como os territórios a abranger, em consonância com o disposto no art.º 8.º do diploma preambular do ECI. Tais projetos-piloto, conforme veremos mais em detalhe, nos termos infra expostos, foram dispersos por 30 concelhos distribuídos por todo o território nacional, em função dos maiores níveis de fragilidade social.

Conforme veremos com maior detalhe adiante, os projetos-piloto, cujo início estava previsto para abril de 2020, mas que, por força dos constrangimentos associados à COVID-19 apenas principiaram em junho,  têm como principal objetivo aplicar em 30 concelhos as medidas de apoio ao cuidador informal principal e não principal, visando avaliar a adequabilidade e capacidade de resposta das medidas de apoio às necessidades reais. Feito este breve introito, cumpre atentar naquelas que são as principais novidades trazidas pelo ECI.

B. Da Regulamentação do ECI (Lei n.º 100/2019, de 06/09 e Portaria n.º 2/2020, de 10/01)

  1. Quem pode ser cuidador informal

De acordo com o art.º 2.º, n.º2 do ECI, pode ser cuidador informal o cônjuge ou unido de facto da pessoa dependente, assim como um parente ou afim até ao quarto grau – temos aqui os primos. Existem ainda requisitos genéricos, previstos na Portaria n.º 2/2020, de 10/01, em especial, o art.º 4.º:

  1. Possuir residência legal em território nacional;
  2. Ter idade superior a 18 anos;
  3. Apresentar condições físicas e psicológicas adequadas aos cuidados a prestar à pessoa cuidada.
  1. Cuidador informal principal versus cuidador não principal

Pode ser cuidador informal principal a pessoa capaz de reunir os seguintes requisitos específicos, constantes do art.º 5.º da Portaria n.º 2/2020, de 10/01, a saber: 

  1. Viver em comunhão de habitação com a pessoa cuidada;
  2. Prestar cuidados de forma permanente;
  3. Não exercer atividade profissional remunerada ou outro tipo de atividade incompatível com a prestação de cuidados permanentes à pessoa cuidada;
  4. Não se encontrar a receber prestações de desemprego;
  5. Não auferir remuneração pelos cuidados que presta à pessoa cuidada.

Ao invés, os cuidadores não principais apresentam os mesmos laços familiares com a pessoa cuidada. Contudo, podem auferir rendimento profissional e receber pelos cuidados prestados.

  1. Quem é elegível para Pessoa Cuidada

De acordo com o art.º 6.º da Portaria n.º 2/2020, de 10/01, para que determinado cidadão possa ser enquadrado na categoria de pessoa cuidada, deverá preencher os seguintes requisitos:

  1. Encontrar-se numa situação de dependência de terceiros e necessitar de cuidados permanentes;
  2. Não se encontrar acolhida em resposta social ou de saúde, pública ou privada, em regime residencial;
  3. É ainda exigido (requisito que, conforme veremos, contestamos) que a pessoa cuidada seja titular de uma das seguintes prestações: a) subsídio por assistência de terceira pessoa; b) complemento por dependência de segundo grau; c) complemento por dependência de primeiro grau.
  1. Do Consentimento Livre e Esclarecido da Pessoa Cuidada

É ainda exigido que a pessoa cuidada preste de forma inequívoca e expressa a sua vontade no sentido de o requerente do estatuto de cuidador informal seja reconhecido como tal. Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 7.º da Portaria n.º 2/2020, de 10/01, o consentimento é prestado mediante declaração de consentimento informado assinada pela pessoa cuidada, mediante exibição de certificação do pleno uso das faculdades intelectuais emitida pelo serviço de verificação de incapacidade permanente do Sistema de Verificação de Incapacidades ou de declaração médica que atesta que a mesma se encontra no pleno uso das suas faculdades intelectuais(2)

Quando a pessoa cuidada não se encontra capaz de prestar, por si, o seu consentimento, porque se encontra transitoriamente impossibilitada de o prestar, prevê-se a possibilidade de o mesmo ser suprido por intermédio do respetivo legal representante. Por fim, encontra-se ainda prevista a possibilidade de o requerimento para reconhecimento do ECI ser instruído com comprovativo de interposição de ação de acompanhamento de maior.

  1. Da tramitação do processo inerente ao reconhecimento do ECI

O pedido deve ser dirigido ao Instituto de Segurança Social, mediante apresentação de requerimento junto dos respetivos serviços ou através de submissão de formulário no portal da Segurança Social Direta (cf. art.º 4.º ECI). Estes serviços deverão proferir decisão no prazo de 60 dias contados da data de submissão do requerimento, sem prejuízo de eventuais suprimentos de irregularidades.

6. Principal feixe de direitos e deveres do cuidador informal 

De acordo com o art.º 5.º do ECI, são direitos do cuidador informal principal legalmente reconhecido, entre outros, os seguintes:

  1. Ser acompanhado e receber a formação necessária ao desempenho das funções de cuidado, bem como receber informação por parte de profissionais das áreas de saúde e da segurança social, sobre a evolução da doença e os apoios a que tem direito;
  2. Receber apoio psicológico, mesmo após a morte da pessoa cuidada;
  3. Usufruir períodos de descanso para o seu bem-estar e equilíbrio emocional;
  4. Beneficiar do regime de trabalhador-estudante quando frequente estabelecimento de ensino e subsídio de apoio ao cuidador informal principal;
  5. Auferir subsídio de apoio ao cuidador informal principal.

No que concerne com os deveres, e na relação com a pessoa cuidada, incumbe ao cuidador informal garantir o acompanhamento necessário ao bem-estar global, prestar-lhe apoio e cuidados em articulação e com a orientação de profissionais da área da saúde e pedir apoio no âmbito social, sempre que necessário. Compete, ainda, ao cuidador informal comunicar à equipa de saúde referenciada, na sua zona de residência, as alterações verificadas no estado de saúde da pessoa cuidada, bem como participar nas ações de capacitação e formação que lhe forem destinadas, entre outras.

7. Quais as condições de que depende a atribuição do subsídio

De acordo com os artigos 10.º e 11.º do ECI, a atribuição deste subsídio está dependente da prova de condição de recursos. Trata-se de uma prestação do subsistema de solidariedade. A condição de recursos diz respeito ao rendimento considerado relevante do agregado familiar do cuidador informal, o qual terá que ser inferior a 1,2 do IAS, atualmente fixado em € 438,81 (cf. art.º 26.º da Portaria n.º 64/2020, de 10/03).

No que respeita ao apuramento do rendimento per capita do agregado familiar do cuidador principal, a ponderação de cada elemento é efetuada de acordo com a escala de equivalência prevista no DL n.º 70/2010, de 16/06(3), em cujo art.º 5.º se dispõe que o peso do requerente será equivalente a 1; cada indivíduo maior do seu agregado será valorado em 0,7 e cada indivíduo menor com aplicação do coeficiente de 0,5. Encontra-se ainda prevista a possibilidade de majoração do subsídio a atribuir, desde que o cuidador se encontre inscrito no regime de seguro social voluntário e enquanto estiver a efetuar o pagamento regular das respetivas contribuições.

Este regime de seguro social voluntário encontra-se previsto para quem não se encontra abrangido por um regime de proteção social obrigatório, destinando-se, desde logo, aos bolseiros de investigação, bombeiros voluntários e pessoas que exerçam voluntariado. O cuidador que aderir a este regime paga uma contribuição mensal para a SS (taxa contributiva de 21,4%) de acordo com o escalão escolhido, e tem acesso a receber prestações sociais nas modalidades de invalidez, velhice e morte.

8. Quais as principais medidas de apoio ao cuidador informal

Encontram-se previstas diversas medidas, para além de algumas a que fomos já fazendo referência, como sejam, o direito a formação e informação específica por profissionais da área da saúde em relação às necessidades da pessoa cuidada, o apoio psicossocial, quando necessário ou, ainda, a participação ativa do cuidador na elaboração do plano de intervenção específico. Todavia, entendemos ser merecedor de destaque as medidas que visam assegurar o descanso do cuidador informal, a saber: 

  1. Referenciação da pessoa cuidada, no âmbito da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), para unidade de internamento, devendo as instituições da RNCCI e da RNCCI de saúde mental assegurar a resposta adequada;
  2. Encaminhamento da pessoa cuidada para serviços e estabelecimentos de apoio social, designadamente estrutura residencial para pessoas idosas ou lar residencial, de forma periódica e transitória;
  3. Serviços de apoio domiciliário adequados à situação da pessoa cuidada, nas situações em que seja mais aconselhável a prestação de cuidados no domicílio, ou quando for essa a vontade do cuidador informal e da pessoa cuidada.

9. Promoção da integração no mercado de trabalho do cuidador informal

Rege o art.º 21.º do ECI no sentido de que o cuidador informal, legalmente reconhecido como tal, desde que tenha prestado cuidados por um período igual ou superior a 25 meses, é equiparado a desempregado de muito longa duração, para efeitos de acesso à medida de incentivo à contratação prevista no DL n.º 72/2017, de 21/06, exigindo-se, para o efeito, a inscrição no centro de emprego após a cessação da prestação de cuidados, sendo afastadas as condições de tempo de inscrição e de idade do trabalhador.

10. Direitos e deveres da pessoa cuidada

Da leitura conjugada do disposto nos artigos 8.º e 9.º do ECI resulta, desde logo, um vasto leque de direitos reconhecidos à pessoa cuidada, a saber:

  1. Ver cuidado o seu bem-estar global ao nível físico, mental e social;
  2. Ser acompanhada pelo cuidador informal, sempre que o solicite, nas consultas médicas e outros atos de saúde;
  3. Direito à sua privacidade, confidencialidade e reserva da vida privada;
  4. Participação ativa na vida familiar e comunitária, no exercício pleno da cidadania, quando e sempre que possível;
  5. Autodeterminação sobre a sua própria vida e sobre o seu processo terapêutico;
  6. Ser ouvida e manifestar a sua vontade em relação à convivência, acompanhamento e à prestação de cuidados pelo cuidador informal;
  7. Sendo menor, e sempre que tal se afigure adequado, que lhe sejam garantidas medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão, de acordo com o Regime Jurídico da Educação Inclusiva, aprovado pelo DL n.º 54/2018, de 06/07;
  8. Proteção em situações de discriminação, negligência e violência.

No que respeita a obrigações, vem-se dispor que a pessoa cuidada tem o dever de participar e colaborar, tendo em conta as suas capacidades, no seu processo terapêutico, incluindo o plano de cuidados que lhe são dirigidos.

Uma vez concluído o périplo por aqueles que entendemos ser os principais elos da coluna vertebral do novíssimo regime do ECI, resultante da conjugação das disposições constantes da Lei n.º 100/2019, de 06/09 e da Portaria n.º 2/2020, de 10/01, é tempo de debruçar a nossa atenção para os supra mencionados projetos-piloto, cujos termos e condições de implementação, bem como os territórios abrangidos se encontram definidos na Portaria n.º 64/2020, de 10/03.

C. Da Execução dos Projetos-Piloto

Nos termos da Portaria n.º 64/2020, de 10/03, encontrava-se prevista a criação de uma Comissão de Acompanhamento, Monitorização e de Avaliação Intersectorial, a ser designada por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do trabalho, solidariedade e segurança social e saúde. Esta comissão veio a ser designada pelo Despacho n.º 10045/2020, de 19/10, tendo por missão a monitorização e avaliação da implementação e execução dos projetos-piloto, bem como da aplicação das medidas de apoio ao cuidador informal.

Os projetos-piloto visam aplicar, por um período de 12 meses, contados desde 01/04/2020(4), em 30 concelhos dispersos pelo território nacional, medidas de apoio ao cuidador informal, principal e não principal, a que já fizemos referência acima, visando avaliar a sua adequabilidade e capacidade de resposta das medidas de apoio às necessidades reais.

Foram eleitos os seguintes concelhos: Alcoutim, Alvaiázere, Amadora, Arcos de Valdevez, Boticas, Cabeceiras de Basto, Campo Maior, Castelo de Paiva, Coruche, Évora, Figueira da Foz, Fundão, Grândola, Lamego, Mação, Matosinhos, Mértola, Miranda do Corvo, Moita, Montalegre, Mora, Moura, Penafiel, Portimão, Sabugal, SEIA, Viana do Castelo, Vieira do Minho, Vila Real e Vimioso.

Em dezembro de 2020, foi publicado o Primeiro Relatório Trimestral produzido pela Comissão, tendo por referente o período compreendido entre 1 de junho e 31 de agosto de 2020(5). No documento, sugere-se que a comissão se reúna para debater temas como os direitos do cuidador face à pessoa cuidada em matérias como cuidados paliativos; a operacionalização do estatuto de estudante-trabalhador, aplicável aos cuidadores; a  definição de requisitos para que se possa adoptar aos cuidadores o regime de parentalidade; o descanso do cuidador, entre outros. O objetivo, segundo a Comissão, é aprofundar a reflexão e análise sobre a matéria com vista à melhoria contínua da implementação do Estatuto e medidas associadas.

Tendo por referente o período abrangido pelo Relatório Trimestral, foram entregues 415 requerimentos para reconhecimento do ECI, a maioria dos quais por via do atendimento presencial nos centros de atendimento da SS (82%) e uma minoria (18%) pela SS direta. Dos 74 requerimentos deferidos nos concelhos piloto, 32 recebem subsídio de apoio ao cuidador informal principal. Até 31 de agosto foram efetuados pagamentos no valor de 31.422,75 euros referentes ao período de abril a agosto de 2020. O montante médio atribuído foi de 283,63 euros, sendo que no OE de 2020 a SS tinha prevista uma verba de 7.5 milhões de euros no âmbito do ECI.

Do relatório trimestral é possível extrair a seguinte caracterização do requerente do ECI, nos concelhos piloto: é do sexo feminino (85%); está na faixa etária dos 50 a 59 anos de idade; apresenta uma média de idade de 52 anos; 41 requerimentos a cuidador foram efetuados por maiores de 65 anos. Nos concelhos abrangidos por projetos-piloto, o cuidador informal pediu o reconhecimento, em primeiro lugar, para cuidar dos seus ascendentes diretos, pai ou mãe (35%) e dos seus descendentes, filho ou filha (35%), seguido do cônjuge (12%), dos irmãos (4%), do companheiro (4%), do sogro (3%), do avô / avó (1%), do tio / tia (1%), sem relação familiar (1%), do neto (1%) e do sobrinho (1%).

Em 95% dos casos existe apenas uma pessoa cuidada para um cuidador. A pessoa cuidada é mulher (58%) e tem, em média, 56 anos de idade. Das pessoas cuidadas nos concelhos piloto, 51% são maiores de 65 anos, 29% estão em idade ativa e 20% são crianças.

D. Quo Vadis? Um convite à Reflexão…

Aqui chegados, cumpre refletir acerca dos principais constrangimentos que a execução dos projetos-piloto trouxe à giza, em linha com as principais fragilizadas apontadas pela Comissão.

1) Desde logo, a necessidade de redefinição do próprio conceito de «pessoa cuidada» e da prova da situação de dependência em que se encontra, bem como a prova da sua dependência. Não podíamos concordar mais: pensemos, desde já, no manancial de situações de dependência, espalhadas pelo país, sem que, contudo, se trate de pessoas abrangidas por qualquer das prestações acima mencionadas – vítimas de atropelamentos, acidentes de viação, situações de demência, e tantos outros… O ECI não deve ter como única ou principal virtualidade a atribuição de um subsídio ao cuidador informal (de máxima importância, não se discute, claro!), devendo, antes, centrar-se nas necessidades da pessoa cuidada, bastando, para tanto, que se encontre factualmente numa situação de dependência ou de cuidados permanente por banda de terceiros, não se encontrando acolhida em qualquer resposta de índole social ou de saúde.

2) Acresce que, e nas palavras da Comissão, o processo tendente ao reconhecimento do ECI revela-se bastante burocrático, exigindo a organização e exibição de muita documentação, por forma a instruir o respetivo requerimento.

3) Outra grande preocupação prende-se com a garantia inequívoca da manifestação de vontade da pessoa cuidada quanto ao cuidador. Isto porque, em momento algum se encontra previsto um contacto direto com a pessoa cuidada… relembre-se que, à luz do regime atualmente consagrado, este consentimento é prestado mediante assinatura de um formulário de consentimento. Não se deveria equacionar a deslocação de técnicos destacados pela S.S. para irem às casas das pessoas cuidadas e recolherem, pessoalmente e na presença de testemunhas, este consentimento?

4) Por outro lado, pese embora não se coloque em causa o voluntarismo e a boa-vontade com que as famílias, prima facie, cuidam dos seus familiares dependentes, é urgente a disponibilização de planos de formação e acompanhamento dos cuidados prestados, numa base contínua, sobretudo se o que temos em mente é a efetivação dos diretos da pessoa cuidada, plasmados no ECI, como sejam, desde logo, o direito de ver cuidado o seu bem-estar global, quer ao nível físico, mental e social? 

5) A par com esta necessidade, logramos identificar ainda uma outra, qual seja, a de fomentar e dinamizar os canais informativos destinados a dar a conhecer este estatuto e as suas valências pela população em geral, nomeadamente pelo incremento de campanhas disseminadas pelos diversos canais de comunicação – TV, rádio, redes sociais. Esta é o primeiro passo para que o ECI saia da penumbra e cumpra, verdadeira e eficazmente, a finalidade para a qual foi concebido: a concretização da norma programática constante do art.º 67.º, n.º 1, als. b) e h) da CRP, de acordo com a qual é uma incumbência do Estado, a fim de proteger a célula fundamental da sociedade (a família) promover a execução de equipamentos sociais de apoio à família, bem como uma política de terceira idade (cf. art.º 72.º); promover a conciliação da atividade profissional com a vida familiar.  Mas também da norma programática constante do artigo 71.º da CRP, a qual diz respeito à incumbência do Estado realizar uma política nacional de prevenção e tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias. Tudo para, no final, cumprir aquela que é a sua principal missão, enquanto Estado de Direito democrático: a concretização da dignidade da pessoa humana, através da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (cf. art.º 1.º CRP). 

6) De outro passo,  a falta de mecanismos concretos capazes de assegurar a operacionalização do direito ao descanso que é reconhecido ao cuidador informal, com especial relevância no contexto atual que atravessamos, de confinamento generalizado e de falta de resposta junto de valências sociais e/ou de saúde para acolherem as pessoas cuidadas, nesses períodos de interregno.

7) Por fim, como é possível assegurar que as normas tendentes ao reconhecimento do estatuto de cuidador informal não são desvirtuadas pelas atuais políticas de trabalho (que vieram para ficar)? Relembre-se que um dos requisitos para determinada pessoa se considerar elegível ao estatuto de cuidador informal se prende com a ausência de qualquer remuneração de atividade profissional.

Resta, pois, aguardar pelo término da execução dos projetos-piloto, na esperança de que sejam consideradas as fragilidades ora apontadas na reformulação de algumas das soluções consagradas no atual regime do Estatuto do Cuidador Informal, por forma a que esta figura cumpra a importante função social que lhe é cometida na sua plenitude. Tenhamos fé!

Notas:

  • (1) Informação extraída do website Portal do INE, acessível pelo website https://www.ine.pt., datada de 31/03/2020.
  • (2) A Portaria n.º 256/2020, de 28/10 veio simplificar o processo de reconhecimento do ECI, atento o atual contexto de pandemia que atravessamos, mediante a concessão de dispensa de junção ao processo de documentos de tão difícil obtenção, nesta fase; é ainda reduzido, para metade, o prazo de conclusão do processo, de 60 para 30 dias. Assim, o art.º 1.º vem eliminar a necessidade de atestado médico que certifique que o requerente possui condições físicas e psicológicas adequadas, prevendo, ainda, a possibilidade de apresentação de documentos que impliquem atos médicos em momento posterior.  Assim, de acordo com o art.º 3.º, até 30/06/2021, os requerimentos de reconhecimento do ECI podem ser apresentados e decididos apenas com a apresentação da declaração de consentimento informado assinada pela pessoa cuidada; e, bem assim, sem os documentos comprovativos da propositura da ação de acompanhamento. Porém, foi fixado um prazo de 180 dias, contados do deferimento do requerimento, para apresentação de tais documentos, sob pena de caducidade.
  • (3) Estabelece as regras para a determinação da condição de recursos a ter em conta na atribuição e manutenção das prestações do subsistema de proteção familiar e do subsistema de solidariedade, bem como para a atribuição de outros apoios sociais públicos, procedendo às alterações na atribuição do rendimento social de inserção, tomando medidas para aumentar a possibilidade de inserção dos seus beneficiários.
  • (4) Todavia, fruto dos constrangimentos associados à Covid-19, só foi possível iniciar tais projetos-piloto em junho de 2020.
  • (5) Relatório de Acompanhamento Trimestral – Acompanhamento das Medidas de Apoio ao Cuidador Informal, disponível para consulta em  http://www.segsocial.pt/documents/10152/17568968/Estatuto%20do%20Cuidador%20Informal%20%E2%80%93%20Relat%C3%B3rio%20de%20Acompanhamento%20Trimestral%20%E2%80%93%20Primeiro%20Trimestre.pdf/88ecf47c-5e86-4b99-a5a0-810dd8c46be0.

Lisboa, 25 de fevereiro de 2021

Foto D.R. In https://www.sns.gov.pt/noticias/2020/03/10/cuidadores-informais-projetos-piloto/

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