Em fevereiro o autor deste texto publicou uma rubrica sobre o equilíbrio entre as múltiplas dimensões da vida, tomando como referencial a pesquisa sobre Qualidade de Vida, da Universidade de Toronto, liderada por Rebecca Renwick.
O entusiasmo suscitado pelo conteúdo da peça foi substancial, assim como a sugestão de ampliar as ideias expostas. A elaboração do presente artigo vem na sequência desse interesse, constituindo-se como uma inopinada segunda parte sobre o tema do equilíbrio da vida.
Algumas das ideias alinhadas nos parágrafos que se seguem não estão enformadas por nenhum referencial científico ou académico, consistindo, pelo contrário, numa reflexão organizada de vivências pessoais e observação de vivências alheias sobre a natureza humana. Honesto é igualmente declarar que algumas inspirações para a articulação do produto pensado derivam parcialmente de leituras nas áreas da psicologia, sociologia, e filosofia, entre outras, que o autor tem feito no âmbito da sua atividade profissional.
Não obstante a larga maioria das pessoas nas sociedades desenvolvidas parecer andar absorta numa correria desenfreada por bens materiais e acumulação de riqueza, o sentido da existência tal como transmitido por algumas religiões e filosofias, parece alicerçar-se em três propósitos mais profundos e interrelacionados: a felicidade, a longevidade, e a imortalidade. Cada um destes resulta de outras tantas necessidades fundamentais humanas: aquelas com origem na mente, as com origem no corpo, e as com origem no espírito. Esta tripartição da pessoa não é original. Garrett e colegas, por exemplo, têm escrito sobre as culturas nativas americanas, e importado técnicas ancestrais dos Navajo e dos Cherokee para o aconselhamento clínico e educacional.
Segundo estes autores (ver p.e., Garrett, Garrett & Brotherton, 2001), a filosofia nativa americana concebe a pessoa como composta de três territórios interiores: mente, corpo, e espírito. Estes devem relacionar-se entre si de forma harmoniosa, e deverão também conectar-se com o mundo exterior: relacionamento do self com os outros, do self com o mundo natural, e do self com o mundo espiritual. Esta relação com o mundo exterior assemelha-se ao conceito africano de ubuntu, em que a pessoa é definida por referência aos outros. Atente-se também aos paralelismos com o artigo publicado no mês de fevereiro, em que se expôs o modelo de Renwick.
Retomando os propósitos humanos, pode ousar-se afirmar que a longevidade é o principal motor do corpo, a imortalidade é o combustível da mente, e a felicidade é o alvo do espírito. No seu íntimo mais profundo, todo o indivíduo intenta prolongar tanto quanto possível a sua presença terrena, que implica manter o corpo em bom funcionamento por muito tempo (longevidade).
Confrontado com uma longevidade limitada, no íntimo humano residirá um desejo relacionado: o de perpetuar de algum modo o legado, a memória, o impacto no mundo, enfim, a mente. A existência de uma obra feita impede alegadamente o esquecimento da individualidade, da mente, e dos seus produtos e efeitos (imortalidade).
Por fim, para conferir significado a uma existência, o espírito demanda um propósito, um sentido, um intento, algo que transcenda a simples observação do mundo concreto dos objetos e da realidade, no que poderá ter-se como a procura da felicidade.
O leitor poderá concordar mais ou menos com esta ordem das coisas e esta visão despreocupada da multidimensionalidade humana, mas certamente concordará que dentro de cada pessoa coexistem vários aspetos que exigem um cuidado continuado e cujo equilíbrio depende de um número ainda maior de fatores e variáveis.
Adotando e adaptando agora alguns pensamentos da filosofa nativa americana ao atrás exposto, podem então avançar-se algumas ideias sobre os múltiplos equilíbrios necessários para se viver uma vida plena nos planos corpóreo, mental, e espiritual. Como se verá em seguida, todos estes equilíbrios são definidos por referência a relacionamentos entre o indivíduo e o seu meio envolvente, interno e externo, tal como preconizado nas culturas dos índios americanos.
Começando pelo corpo, parece indiscutível afirmar que viver melhor e mais tempo depende de dois fatores: nutrição e atividade física. Uma alimentação cuidada e suficiente, e uma atividade física regular e frequente, criam as bases para uma saúde física duradoura, com impactos na mente e no espírito. O interessante trabalho de Dan Buettner, sobre as Zonas Azuis, mostra que a longevidade dos habitantes em algumas locais no mundo se deve em parte a uma dieta com base em plantas e a uma atividade física moderada e constante. A ausência de hábitos nocivos para o corpo, como fumar ou consumir álcool em excesso, também é notado nos habitantes de Sardenha e Okinawa (sendo as outras três zonas: Nicoya, Icária, e Loma Linda).
Continuando para a mente, parece igualmente irrefutável que a produtividade de ideias e pensamentos depende também de dois fatores: atividade e tranquilidade mental. Uma saúde mental equilibrada tem impactos sobre o corpo e o espírito, e é mantida com dois conjuntos de atividades aparentemente paradoxais: por um lado, um cérebro ativo, em aprendizagem contínua e em produção ativa; por outro lado, um cérebro nutrido de descanso (sono) e tranquilidade (livre de pressões e ansiedades excessivas).
Por fim, o espírito humano e a sua busca por felicidade é o que mais complexidades oferece, muito embora se possa manter parcimoniosa a explicação se se agrupar os fatores do espírito também em dois grupos: as relações próximas e profundas, e as relações afastadas e ligeiras. Nas primeiras destacam-se as relações familiares, as amizades, o romance, e outras relações. Nas segundas incluem-se as relações de trabalho, com a comunidade, com a sociedade, e com a Natureza. A felicidade é um caminho que se faz e que depende do equilíbrio entre estes múltiplos relacionamentos, se bem que nas sociedades ditas avançadas amiúde se realce o trabalho e a família, em detrimento do resto. Nas Zonas Azuis de Buettner, a família está acima de tudo, mas o sentido de comunidade e inclusão não é um parente menor no bem-estar das pessoas. Nas comunidades nativas americanas e africanas, a harmonia com a Natureza é essencial.
Levar uma vida longeva, preenchida, e cujo fruto perdure para além da morte física, requer, em suma, uma temperança das muitas dimensões da existência. Apostar tudo no trabalho, descurando a alimentação, o descanso, e a família, por exemplo, pode render progressões na carreira e ganhos materiais, mas o preço a pagar pode traduzir-se, a prazo, em doença física, mental, ou social. Mais discutível, mas pelo mesmo raciocínio, um investimento total em constituir e dedicar-se à família, desleixando o foco em si próprio ou em atividades laborais, pode significar, também a prazo, uma dependência excessiva, material e anímica, de outras pessoas ou entidades.
Viver de forma equilibrada levando em conta todos os elementos referidos não é, decididamente, um desafio simples. Mas é, certamente, um desafio que vale a pena viver.
Referências
Garrett, M.T., Garrett, J.T., & Brotherton, D. (2001). Inner circle/outer circle: A group technique based on Native American healing circles. The Journal for Specialists in Group Work, 26(1), 7-30.