No contexto hospitalar, onde o tempo mede-se em gestos urgentes e decisões críticas, o enfermeiro emerge como uma figura central, muitas vezes invisível aos olhos das estruturas de poder, mas essencial à fluidez e eficácia do cuidado. Este artigo de opinião propõe uma reflexão sobre o papel do enfermeiro como gestor silencioso de fluxos, equipas e emoções, com ênfase na liderança tácita exercida nos turnos de internamento, onde a complexidade assistencial é elevada e as margens de erro são estreitas.
A liderança em enfermagem tem sido tradicionalmente associada a cargos formais, funções de chefia ou coordenação. No entanto, nas práticas quotidianas dos internamentos hospitalares, observa-se uma forma de liderança menos visível, mas profundamente influente: a liderança tácita. Esta manifesta-se através da organização do trabalho em equipa, da antecipação de necessidades, da mediação de conflitos e da regulação emocional do ambiente de cuidados (Antunes & Ferreira, 2022).
O enfermeiro experiente, ainda que sem funções administrativas formais, torna-se uma referência para os colegas, mobilizando saberes acumulados, intuição clínica e capacidade de julgamento para orientar a ação coletiva. Este tipo de liderança é muitas vezes não verbal, discreta, mas determinante para a continuidade e segurança dos cuidados. Como descreve Kouzes e Posner (2019), liderar é essencialmente inspirar outros a agir, e muitos enfermeiros fazem-no através do exemplo, da escuta ativa e da solidariedade interprofissional.
Durante os turnos, sobretudo em ambientes de internamento agudo, os enfermeiros gerem não apenas tarefas clínicas, mas também fluxos logísticos, interações emocionais e dinâmicas de equipa. A ação é atravessada por microdecisões constantes, que incluem priorização de cuidados, articulação com serviços, adaptação a imprevistos e acolhimento de familiares. Esta multipresença operacional é um traço do trabalho invisível em enfermagem (Allen, 2015), que sustenta o funcionamento institucional mesmo quando não é reconhecido pelas hierarquias.
Para além da gestão de processos, o enfermeiro também gere emoções. O internamento hospitalar é um espaço de vulnerabilidade, sofrimento e incerteza. Os profissionais de enfermagem, por estarem em contacto contínuo com os utentes, são frequentemente o primeiro e último rosto que estes veem num turno. A regulação emocional é, assim, uma competência essencial. Estudos como o de Delgado et al. (2023) evidenciam que a inteligência emocional do enfermeiro está positivamente associada à qualidade da relação terapêutica, à coesão da equipa e à prevenção do burnout.
A liderança tácita também se revela nas estratégias de gestão do conhecimento em tempo real. Enfermeiros experientes são frequentemente procurados para esclarecer dúvidas, confirmar procedimentos ou tomar decisões urgentes. Este saber tácito, construído ao longo de anos de prática, é transmitido informalmente, constituindo uma forma valiosa de formação contínua em contexto. Contudo, este capital humano raramente é formalmente mapeado ou valorizado nos planos de desenvolvimento profissional das instituições de saúde.
Apesar disto, esta liderança silenciosa raramente é reconhecida ou formalizada. Os modelos tradicionais de gestão hospitalar privilegiam indicadores quantitativos e estruturas hierárquicas, deixando de fora o valor das interações humanas e das competências relacionais. Este desfasamento entre prática real e reconhecimento institucional gera frustração e desmotivação entre os profissionais. A investigação de Costa e Pimenta (2021) aponta que enfermeiros que sentem o seu contributo invisibilizado têm maior propensão para abandonar o setor público.
É, portanto, urgente resinificar o conceito de liderança em enfermagem, valorizando as formas tácitas, relacionais e situadas de gestão dos cuidados. Isto implica uma mudança nas práticas formativas, na avaliação de desempenho e na cultura organizacional. Como sugerem Stanley e Blanchard (2020), a liderança transformacional em enfermagem exige escuta, empatia e presença, mais do que títulos ou cargos.
A formação inicial deve incluir experiências de simulação realista, reflexão sobre comunicação interpessoal e exercícios de tomada de decisão em cenários complexos. O desenvolvimento profissional contínuo deve contemplar mentoring, coaching e aprendizagem colaborativa, valorizando os saberes experienciais dos enfermeiros seniores. A investigação qualitativa pode também contribuir para tornar visível o invisível, explorando narrativas de liderança tácita e mapeando as redes de influência informal que estruturam os turnos.
Do ponto de vista da gestão hospitalar, reconhecer o papel do enfermeiro como gestor de fluxos e relações implica reformular os sistemas de avaliação de desempenho, integrar indicadores qualitativos e criar espaços de participação efetiva nas decisões. A criação de lideranças distribuídas, onde todos os membros da equipa são valorizados pela sua contribuição única, é um caminho promissor para contextos de elevada complexidade (West et al., 2022).
Ao mesmo tempo, é fundamental promover condições de trabalho que favoreçam o exercício pleno da liderança. Turnos sobrecarregados, escassez de recursos e pressão institucional limitam a capacidade dos enfermeiros de exercerem uma gestão efetiva e humanizada. A liderança tácita não pode ser um substituto da gestão formal, mas sim um complemento essencial que precisa de suporte organizacional.
Adicionalmente, é relevante considerar as dimensões éticas e políticas desta liderança silenciosa. O cuidado em enfermagem é intrinsecamente relacional e implica responsabilidade moral. Ao gerir emoções, acolher fragilidades e tomar decisões em contextos de incerteza, o enfermeiro assume uma posição ética que ultrapassa os protocolos. Esta dimensão ética da liderança deve ser reconhecida e debatida nas instâncias formativas e organizacionais, promovendo uma cultura de cuidado responsável e reflexivo.
Outra dimensão a considerar é a interseccionalidade das práticas de liderança em enfermagem. As experiências de liderança tácita podem variar consoante o género, a idade, a etnia ou a trajetória profissional. Enfermeiras jovens, por exemplo, podem enfrentar maiores desafios em afirmar a sua autoridade tácita junto de equipas mais experientes. Estes fatores devem ser integrados numa análise crítica da liderança, promovendo ambientes de trabalho inclusivos e equitativos.
Por fim, importa destacar que a valorização da liderança tácita pode ser um motor de inovação nos serviços de saúde. Profissionais que se sentem reconhecidos tendem a envolver-se mais nos processos de melhoria contínua, propor soluções criativas e colaborar de forma mais eficaz. Investir no reconhecimento desta liderança é, portanto, uma estratégia inteligente para instituições que visam a excelência assistencial e a sustentabilidade organizacional.
Em suma, o enfermeiro como gestor silencioso de fluxos, equipas e emoções é uma figura chave para a qualidade dos cuidados hospitalares. A liderança tácita sustenta o quotidiano dos internamentos, assegura a continuidade assistencial e promove o bem-estar das equipas e dos utentes. Reconhecer, valorizar e desenvolver esta dimensão da prática é uma responsabilidade coletiva, que implica mudanças nos modelos de formação, gestão e cultura organizacional em enfermagem.
Referências Bibliográficas
Allen, D. (2015). The invisible work of nurses: Hospitals, organisation and healthcare. Routledge.
Antunes, M., & Ferreira, J. (2022). Liderança tácita em enfermagem: percepções e impactos no contexto hospitalar. Revista Portuguesa de Enfermagem, 35(2), 45-58.
Costa, M., & Pimenta, A. (2021). Invisibilidade e reconhecimento profissional em enfermagem hospitalar. Cadernos de Saúde, 10(3), 211-226.
Delgado, L., Silva, F., & Ramos, V. (2023). Inteligência emocional e relação terapêutica em enfermagem hospitalar. Enfermagem em Foco, 14(1), 30-40.
Kouzes, J. M., & Posner, B. Z. (2019). The leadership challenge: How to make extraordinary things happen in organizations. John Wiley & Sons.
Stanley, D., & Blanchard, K. (2020). Clinical leadership in nursing and healthcare. Wiley-Blackwell.
West, M., Eckert, R., Collins, B., & Chowla, R. (2022). Caring to change: How compassionate leadership can stimulate innovation in health care. King’s Fund.