Os clubes de futebol têm atribuído maior relevância à formação de jogadores, procurando identificar precocemente o talento e desenvolvê-lo nas suas academias, de modo a obter vantagens desportivas e financeiras.
A identificação de talentos pode ser definida como o processo de reconhecimento de jogadores atuais como potenciais jogadores de elite, enquanto o desenvolvimento de talentos visa fornecer o ambiente de aprendizagem mais apropriado para realizar esse potencial (Williams & Reilly, 2000).
O jogador é o resultado da interação entre o seu potencial genético e os estímulos externos do ambiente, como por exemplo o futebol praticado na rua ou o treino nas academias dos clubes. Deste modo, o talento representa a “relação funcional desenvolvida entre um performer e um ambiente de desempenho específico” (Keith Davids, 2017, p. 193).
O treino só pode ser encarado como um processo de ensino e aprendizagem se se considerar o talento como algo dinâmico e atualizável. Ao entendermos o treino desta forma implica que na identificação e desenvolvimento do talento se deva respeitar a natureza multidimensional do futebol que se assume como um jogo essencialmente tático e de resolução de problemas (Garganta, 2009).
O jogador é, portanto, resultado das experiências vivenciadas em contextos de prática informais (numa fase inicial), do treino sistematizado e organizado nas academias de futebol e dos contextos competitivos que experiencia ao longo do seu desenvolvimento.
Os clubes de topo procuram identificar talentos em idades cada vez mais baixas visando não perder os melhores jogadores para clubes rivais. Pretendem, com isso, ter a possibilidade de os submeter a um processo de treino dirigido e sistemático.
Este processo de recrutamento acarreta vantagens desportivas e financeiras, tais como a possibilidade de abastecer a equipa profissional sénior com jogadores formados no clube e estabelecer futuras vendas. Com isto, os clubes desenvolvem jogadores conhecedores dos valores do clube, da realidade competitiva e dos objetivos internos.
Mas quais os critérios a considerar na identificação de talento?
Num estudo onde se procurou perceber os critérios utilizados no recrutamento, realizado com oito treinadores da Formação da Seleção Nacional da Dinamarca (Christensen, 2009), concluiu-se que os treinadores utilizam o seu sentido prático e experiência visual para reconhecer padrões nos jogadores; têm preferência por jogadores que demonstram capacidade para aprender e melhorar; e que a escolha é efetuada tendo em conta a sensação que o jogador transmite ao treinador. Estas conclusões apontam para a subjetividade do processo, centrado na interpretação e perceção do treinador acerca da proficiência e potencial de aprendizagem do jogador.
Garganta (2009) advoga que no processo de identificação e recrutamento, a atenção é normalmente dirigida para: os jogadores que manifestem um rendimento atual acima da média; os que, não apresentando no momento um rendimento superior, demonstrem reunir condições para o fazerem em resposta a um processo de treino sistemático; e os que para além de apresentarem um rendimento atual superior aos da sua idade, simultaneamente verifiquem condições para evoluírem significativamente em resposta a um processo estruturado de treino.
É incontroversa a qualificação multidimensional do talento (Baker et al., 2018). Neste sentido, uma outra investigação comparou diretamente a eficácia de três abordagens distintas na seleção de talentos: avaliação de treinadores versus testes de desempenho motor versus dados multidimensionais (Sieghartsleitner et al., 2019). Com uma amostra de 117 jovens jogadores de futebol, em que os pais e treinadores participaram nas medições multidimensionais no escalão etário sub-14 (avaliações de treinadores, testes de desempenho motor, características psicológicas, apoio familiar, historial de treino e maturação biológica), percebeu-se que a combinação do olhar subjetivo do treinador com os dados científicos pode amortecer as fraquezas mútuas dessas diferentes abordagens (Sieghartsleitner et al., 2019).
Um fator muito importante na identificação de talentos é a idade biológica e o efeito da idade relativa (Helsen et al., 2005),
O efeito da idade relativa está relacionado com a discriminação sofrida pelos jovens jogadores que nascem no último trimestre do ano. A FIFA (Federação Internacional de Futebol) estabeleceu em 1997 a data de “cut off” em 1 de janeiro que é baseada no calendário de doze meses. Esta circunstância que visa conferir igualdade de oportunidades e que, em primeira instância, parece apropriada e correta, tem o problema de não ter em consideração que a maturação de cada indivíduo ocorre numa idade cronológica diferente e pode, por isso, afetar negativamente os jogadores nascidos nos últimos meses do ano. Em contrapartida, beneficiando os nascidos nos primeiros meses do ano, conferindo-lhes maiores possibilidades de sucesso (Yague et al., 2018), já que esta diferença resulta em jogadores que têm vantagens físicas e mentais sobre os seus colegas mais jovens (Rubajczyk & Rokita, 2018).
A agravar esta situação, a evolução do jogo de futebol tornou-o mais exigente ao nível da capacidade de locomoção, da força específica e da maturidade psicológica e cognitiva para a tomada de decisão. Os jogadores jovens com maturação mais tardia tendem a correr mais distância a alta intensidade (Lovell et al., 2019) e, por isso, a entrarem em estado de fadiga mais cedo, com a consequente diminuição do rendimento.
Uma vez que a precocidade física aumenta a probabilidade de os jogadores serem bem sucedidos e, por isso, selecionados, este efeito permite que sejam sujeitos a melhores condições de treino e a competições formais mais exigentes (Garganta, 2009).
Num estudo realizado para observar o efeito da idade relativa em jogadores profissionais de futebol das dez melhores ligas da União das Associações Europeias de Futebol (UEFA), de acordo com o IFFHS (Federação Internacional de História do Futebol e Estatística), com uma amostra composta por 5201 jogadores profissionais que participaram nas ligas profissionais durante a temporada 2016-2017, a data de nascimento de cada jogador foi classificada em quatro quartis (Q1, Q2, Q3 e Q4) correspondendo aos trimestres de um ano; os resultados confirmaram uma maior representatividade dos jogadores nascidos no Q1 e Q2, indicando valores estatisticamente significativos para todas as ligas estudadas, exceto na Eerste Klasse A, na Bélgica (Yague et al., 2018).
Importa ressalvar que o sucesso inicial tende a gerar sucesso a longo prazo por duas razões. Primeiro, há uma vantagem psicológica em ser mais velho: como é fácil confundir vantagem de idade com talento intrínseco, as crianças mais velhas tendem a ser vistas como mais competentes por treinadores do que as crianças mais jovens. Em segundo, há uma vantagem organizacional, em que o sucesso inicial também pode dar acesso a treino especializado e sistematizado (Doyle & Bottomley, 2019).Consideramos que para equilibrar as possibilidades de sucesso é necessário que treinadores e scouts sejam sensíveis ao efeito da idade relativa de forma a conferirem oportunidades semelhantes aos jogadores que no momento da identificação se encontram num estado de maturação tardia. Ao reconhecerem as competências e possibilidades de evolução dos jovens, os treinadores dão tempo para que se exprimam. Não raras vezes, estes jogadores desenvolvem competências tático-técnicas, como por exemplo relação com bola aprimorada ou capacidade de antecipação, para fazer face à desvantagem maturacional momentânea.
Em termos práticos, os programas de identificação e desenvolvimento de talentos devem ser individuais e permitir um acompanhamento a longo prazo dos jogadores de forma a compreender as diferentes etapas do seu desenvolvimento e dotá-los das competências (táticas, técnicas, físicas e psicológicas) para atingir o alto nível.
Alguns elementos do desenvolvimento são aleatórios e imprevisíveis, devido à variabilidade intra e interindividual na natureza multidimensional do desenvolvimento do jogador (Baker et al., 2018). Por este motivo, importa, em nosso entender, procurar coerência entre a capacidade do jogador e o contexto em que ele é inserido, de modo a tornar o treino e a competição promotores do seu desenvolvimento.
Deste modo, afigura-se como essencial o papel do treino e do jogo como catalisador das experiências e aprendizagens necessárias ao desenvolvimento do jogador de futebol de elite. Uma boa estratégia passa por promover os jogadores mais dotados a níveis competitivos superiores. Em Portugal, a aposta nas equipas B e a criação da Liga Revelação (sub-23) permite aos jogadores prolongar o seu desenvolvimento e esbater as diferenças entre o escalão de juniores e as principais ligas profissionais. Disputar campeonatos nacionais, jogar no escalão acima e treinar com o plantel sénior profissional são outras medidas que também nos parecem apropriadas.
Para além disto, urge incutir a mentalidade de que o treinador de formação é um formador de jogadores e não de equipas. Apesar de se reconhecer a importância de formar a ganhar e desse ser o principal propósito do jogo de futebol, as adversidades e os resultados negativos são fatores de crescimento dos jogadores e das equipas. Assente numa boa organização coletiva da equipa os jogadores são capazes de expressar melhor as suas potencialidades e superar os problemas do jogo. Em suma, o treinador de formação deve ter como principal preocupação dotar os jogadores de competências para singrarem no futebol profissional.
Autor: Gabriel Silva
Mestre em Treino de Alto Rendimento Desportivo pela Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP) e doutorando em Ciências do Desporto, pela mesma Faculdade, na área da periodização do treino de futebol. É, atualmente, treinador adjunto do Al-Feiha da Arábia Saudita.
Co-autor: Francisco Sá
Licenciado em Educação Física e Desporto pela Universidade da Madeira e mestrando em Treino de Alto Rendimento Desportivo pela FADEUP. Possui experiências enquanto treinador adjunto de futebol a nível nacional e internacional, onde se destacam as passagens pelo União da Madeira e pelo Al Nahda de Omã.
Referências
Baker, J., Schorer, J., & Wattie, N. (2018). Compromising Talent: Issues in Identifying and Selecting Talent in Sport. Quest, 70(1), 48-63.
Christensen, M. K. (2009). “An eye for talent”: Talent identification and the “practical sense” of top-level soccer coaches. Sociology of Sport Journal, 26(3), 365-382.
Doyle, J. R., & Bottomley, P. A. (2019). The relative age effect in European elite soccer: A practical guide to Poisson regression modelling. PLoS One, 14(4), e0213988.
Garganta, J. (2009). Identificação, selecção e promoção de talentos nos jogos desportivos: factos, mitos e equívocos. Actas do II Congreso Internacional de Deportes de Equipo.
Helsen, W. F., van Winckel, J., & Williams, A. M. (2005). The relative age effect in youth soccer across Europe. J Sports Sci, 23(6), 629-636.
Keith Davids, A. G., R Shuttleworth, D. Araujo. (2017). Understanding environmental and task constraints on talent development: Analysis of micro-structure of practice and macro-structure of development histories. In S. C. J. Baker, J. Schorer, & N. Wattie (Ed.), Routledge handbook of talent identification and development in sport London.
Lovell, R., Fransen, J., Ryan, R., Massard, T., Cross, R., Eggers, T., & Duffield, R. (2019). Biological maturation and match running performance: A national football (soccer) federation perspective. J Sci Med Sport.
Rubajczyk, K., & Rokita, A. (2018). The Relative Age Effect in Poland’s Elite Youth Soccer Players. J Hum Kinet, 64, 265-273.
Sieghartsleitner, R., Zuber, C., Zibung, M., & Conzelmann, A. (2019). Science or Coaches’ Eye? – Both! Beneficial Collaboration of Multidimensional Measurements and Coach Assessments for Efficient Talent Selection in Elite Youth Football. J Sports Sci Med, 18(1), 32-43.
Williams, A. M., & Reilly, T. (2000). Talent identification and development in soccer. Journal of Sports Sciences, 18(9), 657-667.
Yague, J. M., de la Rubia, A., Sanchez-Molina, J., Maroto-Izquierdo, S., & Molinero, O. (2018). The Relative Age Effect in the 10 Best Leagues of Male Professional Football of the Union of European Football Associations (UEFA). J Sports Sci Med, 17(3), 409-416.
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