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O cuidado que acontece à beira da cama: a presença como terapia do internamento

O cuidado que acontece à beira da cama: a presença como terapia do internamento

No quotidiano dos serviços de internamento hospitalar, onde a técnica e a eficiência imperam, há uma dimensão silenciosa, mas profundamente transformadora, que atravessa o cuidado: a presença. Este artigo de opinião propõe uma reflexão sobre o cuidado que acontece à beira da cama, defendendo a presença plena do profissional de enfermagem como uma intervenção terapêutica em si mesma. Esta presença, mais do que estar física, é estar com o outro de forma autêntica, escutando, acolhendo, e fazendo do tempo partilhado um espaço de cura e de sentido.

A presença terapêutica é um conceito que tem vindo a ganhar destaque na literatura de enfermagem. Consiste na capacidade do profissional de estar emocional e cognitivamente envolvido na relação com o doente, demonstrando empatia, disponibilidade e respeito pela sua singularidade (Watson, 2022). No contexto do internamento, onde o doente está frequentemente fragilizado, vulnerável e dependente, esta presença assume um valor inestimável.

Numerosos estudos demonstram que a presença do enfermeiro é percecionada pelos doentes como um fator de conforto, segurança e esperança. A investigação de Silva e Ramos (2023) indica que os doentes valorizam mais os momentos de interação autêntica com os profissionais do que os gestos técnicos em si. Sentir-se escutado, ter um olhar que acolhe, ou um silêncio partilhado com significado, são experiências que mitigam a dor, acalmam a ansiedade e favorecem a adesão ao tratamento.

A presença terapêutica está, portanto, ancorada na relação. Não se trata de um atributo individual, mas de uma construção intersubjetiva. Como defende Boff (2019), o cuidado autêntico é aquele que brota da capacidade de afetar-se pelo outro, de deixar-se tocar pela sua dor, sem perder-se de si mesmo. Neste sentido, a presença do enfermeiro é um ato de disponibilidade interior, de suspensão do juízo e de abertura à singularidade da experiência do doente.

Infelizmente, os modelos organizacionais e a pressão assistencial dificultam muitas vezes esta presença plena. Os turnos sobrecarregados, a burocratização do cuidado e a valorização quase exclusiva dos indicadores quantitativos levam a que o tempo com o doente seja reduzido ao indispensável. Como salientam Fernandes e Oliveira (2021), esta ausência de tempo para estar com compromete a qualidade relacional do cuidado e contribui para a desumanização do internamento.

A presença, porém, não é uma questão apenas de tempo cronológico. Trata-se de tempo vivido, em que poucos minutos, mas, pode conter uma densidade afetiva e simbólica intensa. Um gesto atento, uma palavra sintonizada ou um toque com intenção terapêutica podem transformar a experiência do internamento. Esta é a força do cuidado que acontece à beira da cama: o quotidiano tornado lugar de encontro, de significados e de reconstrução.

O cuidar presente é também um cuidar escutante. Escutar o que é dito, mas também o que fica por dizer; escutar com todos os sentidos, com o corpo inteiro. Esta escuta é uma prática de hospitalidade, onde o doente sente-se reconhecido como sujeito e não apenas como portador de uma patologia. Estudos como o de Trindade e Martins (2023) demonstram que a escuta empática está associada à redução de sintomas depressivos e à melhoria da perceção de bem-estar durante o internamento.

A presença à cabeceira é também mediadora de significado. O internamento muitas vezes interrompe narrativas de vida, gera ruturas de sentido e desperta questões existenciais profundas. O profissional que está presente ajuda o doente a reconstruir um fio condutor, a resinificar a experiência da doença e a (re)encontrar esperança. A literatura de enfermagem espiritual e paliativa reforça a importância desta dimensão na promoção do conforto e da dignidade (Puchalski et al., 2022).

Para que a presença se torne uma prática profissional consistente, é necessário investir na formação dos enfermeiros. A competência relacional, a comunicação terapêutica, a regulação emocional e a consciência de si devem ser parte integrante dos currículos formativos. Mais do que técnicas, trata-se de desenvolver atitudes de disponibilidade, escuta e presença. Como afirmam Ribeiro e Lima (2024), é preciso formar enfermeiros que saibam estar com, não apenas fazer para.

As instituições de saúde também têm um papel essencial na promoção desta cultura de presença. Criar condições de trabalho dignas, garantir recursos humanos adequados, valorizar o tempo relacional e reconhecer o cuidado emocional como dimensão central do trabalho em enfermagem são medidas estruturais necessárias. A presença terapêutica não pode depender apenas da boa vontade dos profissionais; ela exige contexto, formação e reconhecimento institucional.

Importa também escutar os doentes sobre o que consideram ser um cuidado significativo. Estudos participativos têm mostrado que a presença do enfermeiro, a disponibilidade para conversar, a atenção aos detalhes e a sensibilidade para o sofrimento são sistematicamente referidos como aspetos que fazem a diferença na experiência de internamento (Carvalho & Pinto, 2023). Esta escuta deve informar a avaliação da qualidade dos cuidados, ultrapassando os indicadores meramente operacionais.

A presença também cura o profissional. Estar com, de forma autêntica, permite ao enfermeiro reencontrar o sentido da sua prática, fortalecer o vínculo com a vocação e proteger-se do cinismo e do esgotamento. O cuidado relacional é um fator de proteção contra o burnout, pois alimenta a experiência de utilidade, pertença e reconhecimento. Como defendem Benner e Wrubel (2020), o cuidar é uma forma de saber e de ser no mundo, que humaniza quem cuida e quem é cuidado.

Em suma, o cuidado que acontece à beira da cama é o coração do internamento hospitalar. A presença terapêutica é um gesto radical de humanidade, que devolve ao cuidado a sua dimensão simbólica, relacional e espiritual. Investir nesta prática é um imperativo ético, clínico e político. Que possamos, enquanto profissionais e instituições, redescobrir o poder transformador de estar com, e fazer do hospital um espaço onde se cuida com competência, mas também com presença.

Referências Bibliográficas

Benner, P., & Wrubel, J. (2020). The primacy of caring: Stress and coping in health and illness. Pearson.

Boff, L. (2019). Saber cuidar: Ética do humano, compaixão pela terra. Vozes.

Carvalho, F., & Pinto, S. (2023). O que importa para quem está internado: percepções dos doentes sobre o cuidado de enfermagem. Revista Lusitana de Enfermagem, 7(2), 88–103.

Fernandes, R., & Oliveira, A. (2021). Tempo e presença no internamento hospitalar: desafios para uma enfermagem humanizada. Cadernos de Enfermagem, 13(1), 22–34.

Puchalski, C. M., Vitillo, R., Hull, S. K., & Reller, N. (2022). Improving the spiritual dimension of whole person care: Reaching national and international consensus. Journal of Palliative Medicine, 25(3), 347–356.

Ribeiro, T., & Lima, H. (2024). Presença terapêutica em enfermagem: uma competência relacional essencial. Enfermagem em Prática, 6(1), 45–58.

Silva, L., & Ramos, P. (2023). A percepção do doente sobre a presença do enfermeiro no internamento. Estudos em Enfermagem, 11(2), 71–84.

Trindade, M., & Martins, C. (2023). Escuta empática e bem-estar emocional no internamento hospitalar. Revista de Cuidados Humanizados, 10(1), 23–36.

Watson, J. (2022). Nursing: The philosophy and science of caring. University Press of Colorado.

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