A educação pública no Brasil está em um ponto de virada, e ao centro, paralelo ao tema Financiamento Educacional, aparece a discussão sobre a Parceria Público-Privada (PPP) na Educação Pública, que não é apenas técnica: é uma questão que define o futuro da nossa sociedade. Há anos, a falta de financiamento adequado e a corrupção têm corroído a qualidade da educação pública, como mostram diversas pesquisas.
Em 2019, publiquei um livro sobre financiamento público das escolas públicas brasileiras, resultado de minha pesquisa de doutorado realizada na PUC/SP, na ocasião, verifiquei que as verbas públicas destinadas à escola pública eram insuficientes e em alguma medida, desviadas de seu propósito final. Foi possível perceber que ações corruptas corroíam a verba pública, durante seu caminho e em seu destino, comprometendo gravemente a qualidade educacional.
A invisibilidade desta rede de corrupção se instala e se fortalece na atitude de consentimento dos envolvidos, mesmo não concordando inteiramente. Fazem-se de cegos, suspeitam ou até mesmo presenciam, mas com a cultura do abafa, deixam-se vencer. Quem vê não denuncia; quem ouve, faz-se de surdo; quem fala, desmente depois. O medo mescla-se à covardia e vence o mais forte. (BOCCHI, 2019, p.19.)[1]
Será que esta realidade constatada em 2019 e infelizmente, considerando a continuidade das pesquisas, presente até os dias atuais, pode sofrer alguma mudança em um cenário de inclusão da parceria público-privada na educação pública? Pergunta profunda e talvez longe de ser respondida, porém possível de ser pensada, diria até, extremamente necessária, em um cenário político-social que aponta para grandes mudanças na área do financiamento educacional brasileiro.
Como ponto de partida para esta escrita, tomo como exemplo o Estado de São Paulo, localizado na região sudeste do país, com quase 4 milhões de alunos na educação básica e um orçamento educacional de R$ 32 bilhões para 2024, e R$ 32,8 bilhões para o ano de 2025. Orçamento este que deveria ser um farol de investimento público, mas a realidade é bem mais complexa.
Onde está o dinheiro da educação?
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece que União, Estados e Municípios devem destinar fatias mínimas de suas receitas à educação (18% e 25%, respectivamente). No entanto, a FINEDUCA (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação) alerta para o perigo atual de desvincular esses recursos, o que “condenaria o futuro das crianças e jovens brasileiros”[2]. O Banco Mundial e o FMI, inclusive, reconhecem que a educação é um investimento, não um gasto que compromete o ajuste fiscal.
Em 2023, o Governo Federal Brasileiro investiu R$ 9,6 bilhões na Educação Básica, com 99,5% de execução orçamentária. Mas se o dinheiro está lá, por que a qualidade ainda é um desafio? A resposta pode estar na forma como ele é gerido e, mais recentemente, na crescente onda de privatização.
PPP na educação: promessa ou ameaça?
A chegada das PPPs na educação pública brasileira, como visto em Manaus e, mais recentemente, no Paraná e em São Paulo, levanta sérias questões. Em Manaus, a parceria resultou na mercantilização do ensino público, transformando a educação em “bens e produtos comercializáveis”. No Paraná, apesar dos protestos de professores e alunos, a gestão administrativa e de infraestrutura de 204 colégios estaduais foi entregue à iniciativa privada a partir de 2025.
Imagem 01 — Protestos contra parceria público-privada nas escolas públicas movimentaram o Paraná.


Em São Paulo, o governo planeja construir 33 novas escolas em modelo de PPP, com o setor privado responsável por serviços não-pedagógicos como alimentação, limpeza, segurança e TI. A justificativa é a otimização e redução de custos, liberando gestores e professores para se dedicarem ao pedagógico. Mas será que é tão simples assim?
Desde o anúncio inicial, o projeto de PPP das escolas estaduais de São Paulo tem avançado em meio a debates e algumas alterações em seu cronograma e formato. Em meados de 2024, após a aprovação da modelagem final pelo Conselho Diretor do Programa de Desestatização (CDPED), a expectativa era a publicação dos editais nos meses seguintes.
Um ponto de discussão constante permanece sendo a transparência e a fiscalização dos contratos com as empresas privadas. Entidades sindicais e especialistas em educação têm expressado preocupações sobre como a qualidade dos serviços não-pedagógicos será garantida e como o repasse de recursos públicos para as empresas será monitorado para evitar prejuízos ao financiamento da área pedagógica.
A dúvida persiste: como uma empresa privada conseguirá lidar com as demandas administrativas e ainda gerar lucro, sem comprometer a qualidade ou exigir ajustes financeiros que, inevitavelmente, recairão sobre o pedagógico? A coexistência de lógicas empresarial e pedagógica dentro da mesma escola levanta questionamentos profundos sobre o futuro da gestão democrática, um pilar da educação pública brasileira. Os conselhos escolares[3], por exemplo, ainda terão voz nas decisões sobre os gastos da verba pública administrada pela iniciativa privada?
O currículo em jogo: formação para quê e para quem?
Ainda mais alarmante é o impacto das PPPs e da lógica privatizante no currículo escolar. Michael Apple[4], em sua análise, define o currículo como um mecanismo de controle social, que reflete os interesses de um grupo específico e suas estruturas econômicas e políticas. No Estado de São Paulo, a adoção de um currículo oficial por competências e habilidades, e a recente implementação do “material 100% digital” com Inteligência Artificial, levantam a questão: estamos formando cidadãos reflexivos e críticos ou meros “tarefeiros” a serviço de um crescimento econômico liberal?
A perda do protagonismo do professor, a terceirização de serviços como merenda, limpeza e segurança, e a contratação de pessoal via “banco de talentos[5]” por empresas privadas, são indícios de uma privatização silenciosa que já vem acontecendo há anos. Com a chegada das PPPs, resta a pergunta: por quanto tempo professores, diretores e supervisores resistirão a essa lógica antes que a iniciativa privada cerque completamente a educação pública?
Qual sociedade estamos construindo?
A PPP na educação pública, sob o pretexto de um “regime fiscal sustentável”, pode ser a investida final para direcionar a verba pública para o setor privado. Há muitos pontos obscuros nessa equação, mas um é cristalino: a escola é o lugar onde formamos os cérebros humanos que, por sua vez, construirão a sociedade.
A questão fundamental é: que tipo de sociedade estamos prestes a construir com essa guinada em direção à privatização da educação?
As considerações atuais sobre essa temática apontam para um cenário de intensificação do debate. Há uma crescente preocupação com a equidade e o acesso à educação de qualidade, especialmente para as populações mais vulneráveis, que podem ser as mais afetadas pela lógica do lucro no ensino. Discute-se também o risco de uma padronização curricular excessiva e o enfraquecimento do pensamento crítico, em detrimento de modelos que priorizam resultados em avaliações estandardizadas, muitas vezes ligadas a metas de desempenho de empresas parceiras. A formação de professores e a valorização do magistério também entram em xeque, com o potencial de vínculos de trabalho mais precários e a perda de autonomia profissional.
Em um contexto global, a experiência de outros países com PPPs na educação tem mostrado resultados mistos, com alguns casos de sucesso em infraestrutura, mas muitos questionamentos sobre o impacto pedagógico e a manutenção do caráter público do ensino. No Brasil, e em São Paulo especificamente, a discussão se aprofunda na capacidade do Estado de fiscalizar e garantir que os interesses da educação, e não apenas os econômicos, sejam priorizados. A sociedade civil, movimentos sociais e especialistas em educação continuam mobilizados para que essa transição, caso se consolide, não comprometa o direito fundamental a uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos.
[1] BOCCHI, Roberta Maria Bueno. Há Corrupção na Educação? Relatos daqueles que vivem essa realidade no chão da escola pública brasileira. Curitiba: Appris, 2019.
[2] FINEDUCA, Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação. Desvincular os recursos mínimos para a educação e saúde da Constituição é condenar o futuro das crianças e jovens brasileiros/as em benefício dos ricos e poderosos. Manifestação da Fineduca sobre o movimento do Governo Federal para desvincular os recursos constitucionais para educação e saúde.Disponível em: https://fineduca.org.br/desvincular-os-recursos-minimos-para-a-educacao-e-saude-da-constituicao-e-condenar-o-futuro-das-criancas-e-jovens-brasileiros-as-em-beneficio-dos-ricos-e-poderosos/ Acesso em: 25/07/2024.
[3] Os Conselhos Escolares são órgãos colegiados, ou seja, grupos nos quais as decisões são tomadas de forma coletiva, com a participação de diversos segmentos da comunidade escolar e local. Eles representam um pilar fundamental para a gestão democrática das escolas públicas no Brasil.
[4] APPLE, M. W. Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006.
[5] Essa modalidade visa criar um cadastro de profissionais pré-selecionados e aptos para serem convocados conforme a necessidade da rede de ensino.