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Não é preciso saber o que é um líder, ou como ser líder, para se ser um excelente líder

Não é preciso saber o que é um líder, ou como ser líder, para se ser um excelente líder

“Vamos unir-nos com amor, em paz, para esta família, para que eles possam viver novamente, para que todos nós possamos viver novamente”. Estas palavras foram proferidas pela primeira-ministra (PM) da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, na abertura do discurso em memória das vítimas do pior atentado terrorista ocorrido no país, em que 50 pessoas haviam perdido a vida quinze dias antes, na mesquita Al Noor e no centro islâmico em Linwood, na cidade de Christchurch. O discurso foi sobretudo em língua inglesa, com os trechos iniciais em māori e várias expressões em árabe. Durante a cerimónia, a PM exibiu um manto tradicional māori, a cultura indígena do país.

O choque e surpresa do ataque foram apenas ultrapassados pela forma como Ardern lidou com a situação desde o início. Correram mundo imagens de uma PM de lenço na cabeça enquanto visitava os locais dos massacres, a abraçar os sobreviventes, e a chorar com os familiares das vítimas. Mas foram sobretudo as suas palavras nos media que causariam impacto: pouca atenção dada ao atacante, ênfase no entendimento e integração das comunidades e dos emigrantes (muitos eram oriundos de países como o Bangladesh, Afeganistão, ou Jordânia), no papel das famílias, do amor e da ajuda para a recuperação física e psicológica, e em valores como a liberdade e a solidariedade.

Tais valores já haviam sido evocados em discursos anteriores por outros líderes mundiais, após outros atentados. Todavia, a retórica havia sido muito diferente: de retaliação e de combate do terror com terror: 1) François Hollande, em novembro de 2015, após os atentados de Paris, começa por afirmar “A França está em guerra”, e mais adiante anuncia um ataque aéreo à cidade de Raqqa, um dos bastiões do Daesh; 2) Jens Stoltenberg, em julho de 2011, sobre o massacre em Utøya e em Oslo, inicia o seu discurso por “Já passaram dois dias desde que a Noruega foi atingida pela maior atrocidade desde a Segunda Guerra Mundial”; e 3) George Bush, na noite de 11 de setembro de 2001, abre a sua nota à nação com “hoje, os nossos cidadãos, o nosso estilo de vida, e a nossa liberdade, foram atingidos numa série de ataques terroristas mortíferos e deliberados”.

Jacinda Ardern ignora o atacante: nunca diz o seu nome em público, não promete procurá-lo nem trazê-lo à justiça, não o chama cobarde ou terrorista (mas apelida-o criminoso); tampouco clama que o combate ao terror se faz com coragem, justiça e guerra. Tão interessante como o que diz, é o que não diz: o combate ao terror faz-se… ignorando o terror. Trata-se de uma mensagem poderosa, oposta às de outros líderes que tiveram que reagir perante situações similares.

Talvez por Ardern ser mulher. Talvez por viver num dos 3 países mais pacíficos do mundo (em 2018, segundo o site Global Finance). Talvez por habitar num país com baixa densidade populacional e sem histórico de violência, guerra, ou outros conflitos que qualificam a maioria dos países noutros continentes. Ou talvez por uma combinação de todas estas e outras razões, o facto é que a PM neozelandesa tem inspirado muitos a refletir sobre o que é um líder, especialmente em situações de crise. A discussão é ainda mais relevante, dado que o mundo enfrenta desafios e transformações radicais, como o aquecimento global e a escassez de recursos, a digitalização, robotização e outros avanços tecnológicos, e várias tensões políticas, sociais e económicas um pouco por todo o globo. Adivinham-se crises adiante. Pelo que é justo perguntar se existirão outras Jacindas entre os líderes atuais.

Em entrevista ao The Guardian, 10 dias depois do ataque, Ardern revelou que logo após ter sido informada que o alvo do ataque fora a comunidade muçulmana, percebeu a mensagem que deveria transmitir ao país: uma sobre sentimentos e emoções, e sobre os valores da inclusão e solidariedade. No momento do tiroteio a PM encontrava-se de visita a New Plymouth; voou no dia a seguir para Christchurch, tendo apenas tempo para pedir emprestado um lenço, que usou quando visitou os feridos e familiares das vítimas. “Um sinal de respeito”, diria ela ao jornalista Toby Manhire, do jornal. Todas as ações da PM foram pouco pensadas ou discutidas com especialistas: “muito pouco do que fiz foi planeado. Foi intuitivo. Há muito pouco tempo para nos sentarmos e pensarmos. Temos que fazer o que sentimos que é correto”, explicou ao periódico britânico.

Enquanto unia o país através das suas ações e partilhava a dor com os alvos de Christchurch, no parlamento kiwi anunciava novas leis destinadas a banir armas semi-automáticas no país. Mais tarde, lançaria uma comissão para estudar e investigar o fenómeno da influência das redes sociais na disseminação de mensagens de ódio e de instigação ao terror.

Séneca certa vez afirmou que é durante a tempestade que se conhece o piloto. Ardern soube pilotar a sua aeronave com perfeição durante a tempestade que assolou o país. Usou a intuição para tomar as decisões acertadas. Mostrou e partilhou as emoções e sentimentos mais essenciais para quem sofre terrivelmente. Soube negar com astúcia a vontade e a existência daquele cujo-nome-também-não-se-escreveu-neste-artigo. Respeitou as diferenças, mas unindo todos em redor de uma mesma família. E extraiu ensinamentos para aplicação futura. Liderou pelo exemplo, pela ação, pela palavra, pela inspiração e pela decisão.

A literatura e os casos sobre liderança acumulam 125 anos de conhecimento. O entendimento sobre o tema é vasto, embora não completo nem definitivo. Jacinda Ardern está muito provavelmente alheada de todas as teorias e modelos existentes sobre liderança, mas isso não parece ser motivo suficiente para não saber exatamente o que fazer durante uma crise. O seu exemplo vale por mil livros sobre liderança.

(Em 2010 o autor deste texto viveu durante alguns meses em Christchurch. Com o presente artigo pretendeu não apenas realçar alguns atributos da liderança em tempos de crise, mas também prestar homenagem a todos aqueles que sofreram o ataque em 15 de março de 2019)

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