Por muito tempo, os parâmetros do sucesso de um artista musical eram medidos pela quantidade de vendas de seus álbuns. A entrega de troféus como disco de ouro, platina ou diamante referendava este sucesso, além das contínuas execuções em emissoras de rádio, para os gêneros mais acessíveis. Hoje em dia, com a exiguidade da comercialização de mídias físicas, o desempenho costuma ser mensurado pela quantidade de vezes que uma determinada canção é repetida em aplicativos como Spotify, Deezer e afins. Não obstante isso ocorrer através da intervenção de robôs, conforme questiona alguns ouvintes, após a divulgação de resultados não necessariamente reconhecidos pelos mesmos. Muitas vezes, é a publicização do nome de uma canção ou artista numa dessas listas de “mais ouvidos” que engendra o seu sucesso, paradoxalmente, tal qual ocorreu com o cantor goiano Grelo, cuja composição “Só Fé” tornou-se a mais ouvida do Brasil, a despeito de ser refutada por muitas pessoas, em razão de características intrínsecas (voz anasalada do cantor, simplismo da letra, etc.) ou da vinculação bolsonarista do artista. Chegou até a ser cantarolada pela portuguesa Maro, numa de suas redes sociais…
Se a maioria das canções listadas entre as mais executadas pertencem a gêneros como funk ou sertanejo, hostilizados por ouvintes elitistas, é uma surpresa positiva que o disco “Caju”, lançado em 19 de agosto de 2024, pela cantora Liniker, tenha se destacado entre os mais ouvidos. Afinal, em muitos aspectos, trata-se de um álbum que evita as fórmulas ditadas pelas configurações fonográficas hodiernas (como canções que não ultrapassam os três minutos de duração, por exemplo), sendo que algumas faixas da artista possuem mais de sete minutos. Na verdade, comparando-se “Caju” com os trabalhos anteriores da cantora — inclusive quando ela colaborava com a banda Os Caramellows —, este talvez seja o seu trabalho mais concessivo, possuindo alguns refrãos pegajosos e colaborações com artistas de sucesso, mas nada que interfira na qualidade do produto: “Caju” faz jus aos extremos elogios que vem recebido da crítica e à difusão entusiasmada entre os fãs da cantora — que, até recentemente, era conhecida sobretudo nos circuitos alternativos!
Contendo quatorze faixas, compostas parcial ou integralmente pela cantora, “Caju” inicia-se de maneira intimista e dançante, com a faixa-título sobre uma paixão intensa, em que ouvimos ruídos de alto-falantes, em japonês, no que parece ser um aeroporto. O eu-lírico pergunta ao seu interlocutor quem estaria esperando por ela ali, pedindo para que seja diminuído o fluxo de viagens e eventos. “No samba, sei que samba, e o que será que faz chorar?/ Será que você sabe que, no fundo, eu tenho medo de correr sozinha e nunca alcançar?”, ressalta a letra. É difícil não ser conquistado pelo tom confessional desta canção, que corrobora as interessantes pesquisas da artista, em relação às sonoridades negras, que desenvolvia em discos anteriores.
Sendo a primeira associada transexual a integrar a Academia Brasileira de Cultura (ABC), Liniker é celebrada pela complexidade de suas composições, o que justifica os prêmios que recebeu por seu disco solo de estréia, “Indigo Borboleta Anil”, de 2021, que, entre outras láureas, recebeu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. O sucesso imediato de “Caju” indica que ela pode ser tão consagrada quanto, sendo que canções como “Tudo” (faixa 02), “Me Ajude a Salvar os Domingos” (05), “Febre” (10) e “Deixa Estar”(12), que conta com as participações de Lulu Santos e Pabllo Vittar, são algumas das favoritas de seus fãs, junto à contagiante “Pote de Ouro” (11), cujo refrão é grudento, mas sem subestimar a inteligência emocional de seus ouvintes: “você já sabe que perdeu o teu tesouro/ Pode chorar, você não vai me ver de novo/ Não caibo mais na tua história, mentiroso”. Quem nunca quis gritar algo parecido para alguém?
Faixas como “Veludo Marrom” (03) e “Ao Teu Lado” (04), ambas com mais de sete minutos de duração, também chamam a atenção no disco, por conta dos arranjos lentos e das letras carregadas de densidade emocional. A primeira delas possui similaridades com composições da cantora britânica Anonhi (mais precisamente com faixas do disco “My Back Was a Bridge for You to Cross”, um dos melhores lançamentos de 2023), enquanto a segunda conta com as colaborações do pianista Amaro Freitas e da dupla ‘pop’ tocantinense Anavitória. Trata-se de um álbum muito superior à média do que é inserido nesse tipo de lista e que, como tal, merece ser divulgado. O que faz com que voltemos a um chavão muitas vezes repetido, nesta coluna: ao invés de concedermos visibilidade e/ou estimularmos curiosidades acerca daquilo (ou daqueles) que consideramos contraproducentes, em âmbito cultural ou político, convém exortarmos os feitos de quem nos estimula sensória e afetivamente. Vale a pena ouvir este ótimo disco da Liniker, portanto!
Wesley Pereira de Castro.