O recente aviso do governo francês para que hospitais se preparem para um cenário de guerra de alta intensidade até 2026 reacendeu debates sobre a resiliência dos sistemas de saúde face a crises extremas. Este artigo analisa o documento revelado pelo semanário Le Canard enchaîné e as orientações do Ministério da Saúde francês, problematizando a preparação de infraestruturas civis para eventualidades militares. Através de revisão de literatura e análise crítica, exploram-se os desafios éticos, logísticos e políticos da mobilização hospitalar em contexto de guerra. Defende-se que a antecipação estratégica, ainda que geradora de alarme público, é fundamental para salvaguardar vidas e garantir a continuidade dos cuidados, numa Europa atravessada por tensões geopolíticas.
“Preparar-se para a guerra é paradoxalmente uma forma de proteger a paz” (Kaldor, 2024). A revelação, em agosto de 2025, de uma instrução interna do governo francês ordenando que os hospitais nacionais se organizem para cenários de guerra trouxe à superfície uma questão delicada: até que ponto os sistemas de saúde devem ser moldados para responder a catástrofes bélicas em tempos de relativa paz? O presidente Emmanuel Macron tem reforçado a necessidade de autonomia estratégica europeia, sobretudo no contexto de um possível retraimento dos Estados Unidos no apoio à defesa do continente. Inserido nesta narrativa, o documento ministerial que projeta até 50 000 vítimas potenciais num intervalo de 10 a 180 dias representa não apenas um exercício de planeamento, mas um alerta político sobre vulnerabilidades infraestruturais.
A literatura sobre resiliência hospitalar em cenários extremos tem crescido, sobretudo após a pandemia de COVID-19, que demonstrou as fragilidades estruturais dos sistemas de saúde mesmo em contextos de paz. Kruk et al. (2025) sublinham que a resiliência dos sistemas de saúde é determinada pela capacidade de absorver choques e manter serviços essenciais. Esta ideia de continuidade operacional mesmo em situações de pressão extrema é central para compreender a lógica da circular francesa. Estudos europeus recentes, como os de Aluttis e Odone (2024), destacam a crescente necessidade de integração entre defesa civil e saúde pública, propondo que os sistemas de resposta a catástrofes híbridas — como guerras, pandemias ou ciberataques — partilhem recursos, formação e logística. A experiência ucraniana desde 2022 trouxe contribuições práticas inegáveis: hospitais de campanha, corredores de evacuação médica, redes móveis de primeiros socorros e a mobilização de voluntários civis provaram ser cruciais não apenas para salvar vidas, mas também para manter a coesão do sistema de saúde em situações-limite (Pasternak et al., 2024).
A circular do Ministério da Saúde francês, tornada pública em agosto de 2025, estabelece objetivos concretos: até março de 2026, hospitais e profissionais de saúde deverão estar capacitados para lidar com um fluxo de até 250 feridos por dia, durante semanas consecutivas. A proposta de instalar centros médicos avançados próximos a portos e aeroportos responde à necessidade de evacuação rápida e gestão de vítimas em massa, num modelo que visa descongestionar os hospitais centrais e descentralizar a resposta hospitalar. Estudos de Henriques et al. (2025) apontam que a descentralização de unidades de resposta é essencial para evitar colapsos hospitalares, especialmente em contextos de guerra híbrida ou urbana. A antecipação da logística — incluindo reserva de sangue, oxigénio, camas de cuidados intensivos e medicamentos críticos — torna-se uma dimensão essencial do planeamento estratégico.
Outro aspeto fulcral do plano é a mobilização de 14 000 profissionais de saúde do serviço militar, com possibilidade de requisição civil de enfermeiros, médicos e técnicos de emergência. Este ponto expõe uma realidade do século XXI: em guerras modernas, os profissionais de saúde são tão estratégicos quanto os militares. Como sublinha Wilding et al. (2019), a cooperação civil-militar em emergências sanitárias é cada vez mais frequente, mas deve ser gerida com rigor ético. Levanta-se a questão sobre até que ponto é legítimo converter estruturas civis em extensões do aparelho militar, sem comprometer a neutralidade, universalidade e acessibilidade dos cuidados. Existe aqui um risco de militarização simbólica da saúde, que pode corroer a confiança pública nos serviços civis e gerar uma perceção de instabilidade latente (Vayena & Blasimme, 2024).
A comunicação política do plano também merece atenção. A ministra da Saúde, Catherine Vautrin, tentou reduzir alarmismos ao afirmar que o plano faz parte da rotina de antecipação de crises. Contudo, a divulgação do conteúdo pelo Le Canard enchaîné gerou uma reação pública intensa, com receios de guerra iminente e críticas à opacidade do governo. Como mostram Nilsen et al. (2024), a forma como os governos comunicam os planos de contingência é determinante para a confiança social. Uma comunicação transparente, baseada em dados, mas também sensível ao contexto emocional da população, é essencial para evitar pânico ou desinformação.
O episódio não pode ser lido isoladamente do atual contexto geopolítico europeu. A guerra na Ucrânia, as tensões no Indo-Pacífico, a possível reeleição de Donald Trump nos EUA e o rearmamento da Rússia alimentam o discurso da “Europa da Defesa” promovido por Macron. Preparar hospitais para cenários de guerra é, neste sentido, um gesto simbólico de responsabilidade estratégica, que se insere numa lógica mais ampla de autonomia militar e política da União Europeia. Tal como defende The Guardian (2025), Macron tem procurado posicionar a França como líder de uma nova arquitetura de segurança europeia. O reforço da capacidade de resposta dos hospitais é apenas uma das faces deste reposicionamento.
Mas há também implicações práticas diretas para áreas específicas como a enfermagem de reabilitação. O planeamento de resposta hospitalar não pode ignorar que muitas das vítimas de conflitos armados sofrem lesões crónicas, amputações, traumas psíquicos e défices funcionais prolongados. Cardoso, Rocha e Martins (2024) defendem que a enfermagem de reabilitação deve ser integrada desde o primeiro momento do planeamento, assegurando continuidade de cuidados e reinserção social dos afetados. Negligenciar esta dimensão é comprometer a recuperação a longo prazo e sobrecarregar os sistemas após a fase aguda do conflito.
Mais ainda, a resposta a cenários de guerra exige uma abordagem intersectorial. Os hospitais não operam no vazio. A sua preparação depende da articulação com proteção civil, forças armadas, sistemas de transporte, cadeias logísticas e comunicação em rede. A resiliência hospitalar é, assim, uma função do ecossistema social, político e infraestrutural. Daí que políticas públicas devem prever cenários de interdependência crítica, incluindo planos para ciberataques, falhas de rede elétrica, bloqueios logísticos e sobrecarga humana.
Por fim, é importante destacar o risco de instrumentalização política da preparação hospitalar. Medidas preventivas, se mal comunicadas ou exageradas, podem ser utilizadas para justificar políticas securitárias, repressivas ou de restrição de direitos. O equilíbrio entre segurança e liberdade é frágil, especialmente quando se mobiliza o medo coletivo. Nesse sentido, a transparência, o escrutínio democrático e a supervisão científica devem acompanhar qualquer plano nacional de contingência.
A França, sob liderança de Macron, adotou uma postura preventiva face a um cenário de guerra de alta intensidade, ao instruir os hospitais a prepararem-se para uma vaga massiva de feridos até 2026. Embora polémica, esta medida insere-se numa lógica de resiliência hospitalar e de autonomia estratégica europeia. Do ponto de vista científico, o caso francês mostra a importância de articular defesa civil, saúde pública e comunicação política. Sistemas hospitalares robustos não podem ser concebidos apenas para a normalidade, mas para responder a choques extremos. Por fim, permanece o dilema ético: até que ponto preparar hospitais para guerra reforça a paz — ou alimenta a perceção de vulnerabilidade? A resposta, talvez, resida no equilíbrio entre planeamento e confiança social. Afinal, um sistema de saúde resiliente é aquele que se antecipa sem alarmar, que se adapta sem militarizar e que protege sem sacrificar os seus princípios fundamentais.
Referências Bibliográficas
Aluttis, C., & Odone, A. (2024). Civil protection and public health: Towards integrated preparedness in Europe. European Journal of Public Health, 34(2), 215–220. https://doi.org/10.1093/eurpub/ckae012
Brussels Times. (2025, August 28). France wants hospitals to prepare to care for wounded soldiers. https://www.brusselstimes.com/1721766/france-wants-hospitals-to-be-war-ready
Cardoso, N., Rocha, I., & Martins, L. (2024). Enfermagem de reabilitação: Novas abordagens baseadas em evidência. Millenium, 12(1), 77–90.
Euroweekly News. (2025, August 27). France tells hospitals to be war-ready by March 2026: Leaked letter lays out mass casualty plan. https://euroweeklynews.com/2025/08/27/france-tells-hospitals-to-be-war-ready
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Kruk, M. E., Myers, M., & El-Sadr, W. (2025). Resilient health systems in the face of shocks. The Lancet Global Health, 13(1), e1–e10. https://doi.org/10.1016/S2214-109X(24)00563-8
Nilsen, P., Strehlenert, H., & Tjora, A. (2024). Crisis communication in public health: Lessons from Europe. Health Policy, 138(5), 112345. https://doi.org/10.1016/j.healthpol.2024.103234
Pasternak, I., Shevchenko, O., & Bondar, V. (2024). War and healthcare: Lessons from Ukraine. BMJ Global Health, 9(4), e013257. https://doi.org/10.1136/bmjgh-2023-013257
The Guardian. (2025, March 5). Macron to address French voters amid Trump concerns. https://www.theguardian.com/world/2025/mar/05/macron-will-make-televised-address
Vayena, E., & Blasimme, A. (2024). Ethics of preparedness: Balancing militarisation and trust in health systems. Journal of Medical Ethics, 50(3), 150–157. https://doi.org/10.1136/medethics-2023-109014
Wilding, M., Martin, E., & Clarke, P. (2019). Civil–military cooperation in health emergencies. Disaster Medicine and Public Health Preparedness, 13(5–6), 811–818. https://doi.org/10.1017/dmp.2018.151