Numa entrevista concedida à pesquisadora Lúcia Nagib — que deu origem ao livro “Em Torno da Nouvelle Vague Japonesa” — o cineasta Masahiro Shinoda [1931–2025] comentou que, em todos os seus filmes, ele tenta “mostrar como se leva uma pessoa a transformar-se num deus”, processo este permeado por muita violência. Especializado nos filmes históricos, este realizador — que faleceu no último dia 25 de março de 2025, aos oitenta e quatro aos de idade — tornou-se conhecido por obras como “Flor Seca” (1962), “Assassinato” (1964) e, sobretudo, “Duplo Suicídio em Amijima” (1969), mas foi também responsável pela primeira versão cinematográfica de “Silêncio” (1971), a partir do romance homônimo publicado em 1966 pelo autor Shüsaku Endo [1923–1996], que é co-roteirista do filme. O teor religioso é predominante, mas há muito nas entrelinhas…
Descendente de uma família de fabricantes de lanternas tradicionais japonesas, Masahiro Shinoda foi atleta, antes de se tornar cineasta. Ao refletir sobre situações relacionadas à presença recorrente de norte-americanos no Japão, após a derrota deste último país, na II Guerra Mundial, este realizador declarava que “o segredo do comportamento do homem está contido na história”, e complementa: “enquanto filmo, o tempo está passando, e mesmo essa passagem do tempo é triste. Meu interesse é fazer com que o tempo do cinema sincronize com o tempo real. O filme passa na vertical, e o tempo passa na horizontal”. Como tal, seu objetivo era “descobrir o momento em que ambos se encontram”. Assistindo às suas obras, isso é manifestado em viés analítico, conforme percebemos diante do supracitado “Silêncio”.
Passado no Século XVII, quando interesses comerciais fizeram com que a Igreja Católica expandisse a sua influência pelo mundo, após a crise que desembocou na Reforma Protestante, a partir de 1517, o enredo deste filme mostra a peregrinação de dois padres portugueses, Sebastião Rodrigues (David Lampson) e Francisco Garupe (Don Kenny), que viajam pelo Japão, no afã por encontrarem Cristóvão Ferreira (Tetsurö Tamba), um padre mais velho, desaparecido há alguns anos. Ocorre que, neste país, o Cristianismo é considerado uma heresia pelo magistrado Inoue (Eiji Okada), de modo que os seus praticantes são presos, torturados e até mortos, com requintes de crueldade. Conduzidos pelo pescador Kichijiro (Mako Iwamatsu), Sebastião e Francisco chegam a um vilarejo, onde os aldeões são também cristãos, mas, desejoso de receber uma recompensa ofertada para quem entregar os padres, Kichijiro os trai. Ambos são presos e violentamente convencidos a praticarem a apostasia.
Ao longo dos cento e vinte e nove minutos de duração do filme, acompanhamos demorados e impressionantes processos de tortura, como o instante em que uma esposa é amarrada num poste, enquanto o seu marido é enterrado no chão, prestes a ser pisoteado por um cavalo. Noutro momento, praticantes locais do cristianismo são crucificados numa praia, em meio à maré crescente, até que sejam completamente cobertos pelas águas. Crentes de que despertarão no Paraíso, após a morte, eles cantam, não obstante o sofrimento. Testemunhando o martírio destas pessoas, Sebastião começa a refletir sobre os motivos para o silenciamento de Deus, o que descadeará um diálogo sobremaneira delicado com Cristóvão Ferreira, que rejeitou a sua ascendência europeia e modificou o seu nome e as suas crenças, adotando uma designação enquanto japonês (Chuan Sawano) e escrevendo livros sobre “as falsidades do cristianismo”. Na derradeira cena, mais uma situação de violência, agora mediada pelo silêncio humano.
Quem assiste a este filme, depois da versão catequética, realizada por Martin Scorsese, em 2016, notará uma diferença radical de tom entre as duas obras, no sentido de que a produção de Masahiro Shinoda chega a ser inclemente naquilo que expõe, inclusive depois que os padres admitem que um dos motivos para a proibição do cristianismo no Japão, naquele período, tem a ver com o fato de que esta religião apregoa a monogamia e a fidelidade matrimonial, práticas que vão de encontro aos interesses masculinos imperiais. Ao longo da via-crúcis do protagonista, diversos paralelismos com a vida de Jesus Cristo são traçados, como a diferença do preço pela recompensa por sua traição (trinta moedas de ouro, num caso; trezentas, no outro), o que faz com que Sebastião seja confrontado com sua própria “vaidade de santo”, já que sua morte vale dez vezes mais. O ritual de apostasia ofertado aos torturados consiste no ato de cuspir e/ou pisar numa imagem cristã (fumi-e), além da ordem de xingar a Virgem Maria de prostituta. Os seguidores nipônicos da religião cristã (que é e origem estrangeira) hesitam, e o roteiro divide-se em duas perspectivas observacionais: de um lado, a celebração da fé de pessoas que resistem ao sofrimento, a fim de professarem aquilo em que foram convencidos a acreditar; do outro, as considerações sobre o aspecto colonizatório das diretrizes da Companhia de Jesus, fundada em 1534, sob a liderança de Inácio de Loyola [1491–1556]. Antes do desfecho, Sebastião e Sawano auxiliam o imperador japonês a reconhecer artefatos que podem ou não ser cristãos, para além de seu valor comercial. Kichijiro, por sua vez, arrepende-se de ter traído o padre, resolve entregar-se aos inquisidores, mas logo sucumbe ao alcoolismo e à luxúria. Masahiro Shinoda refere-se à política, na entrevista que serve de mote a esse texto, como “uma droga, da qual a pessoa não consegue largar”. A quem serve a nossa fé? No caso brasileiro por exemplo, um direcionamento para os enredos bíblicos do Velho Testamento facilitou a adesão de eleitores evangélicos à beligerância típica do bolsonarismo. Voltaremos a este assunto em debates vindouros. Estamos na quaresma, afinal: estás a fazer jejum? Em caso afirmativo, por quê?
Wesley Pereira de Castro.
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