Cedo ou tarde, qualquer amante da literatura mundial há de enfrentar a necessidade de embrenhar-se pelas páginas íngremes do clássico “Ulysses”, publicado pelo irlandês James Joyce [1882-1941] em 1922. Escrito ao longo de sete anos – entre 1914 e 1921 – e enciclopedicamente consagrado como “a obra que inaugurou a técnica do monólogo interior na literatura ocidental”, este romance surpreende pela maneira inusitada com que concatena os seus dezoito capítulos: tudo acontece num único dia, 16 de junho de 1904, mas a narrativa desenvolve-se de maneira absolutamente singular – ou melhor, plural e, às vezes, antinarrativa –, através de situações que, conforme indica o título, parodiam a famosa “Odisséia”, de Homero [928 a.C. – 898 a.C.].
No fiapo de trama que se estende pelas centenas de páginas deste livro, o pacato cirurgião-dentista Leopold Bloom perambula pelas ruas de sua cidade-natal, Dublin, numa manhã calma de quinta-feira. O relato inicia-se às oito horas da manhã, quando o padre Buck Mulligan e o professor Stephen Dedalus – alter-ego do escritor, que já apareceu no romance “Um Retrato do Artista Quando Jovem”, publicado em 1916 – conversam sobre a crença em Deus e a ascendência shakespeareana. Avança ao longo do dia, encerrando-se após as duas horas da madrugada, quando, ao voltar para casa, depois de visitar um bordel, Leopold deita na cama com a sua esposa, que reflete sobre os seus amantes, reais e imaginários, num monólogo tão longo quanto magistral. É um livro muito difícil de ser lido, mas esplêndido em seus variegados jogos estilísticos.
Cada um dos capítulos faz menção a alguma das passagens do périplo do personagem grego Ulisses, em seu trajeto de volta para a sua residência, da qual esteve afastado por muitos anos. Ao contrário do que ocorre na odisséia original, a esposa do protagonista de “Ulysses” não é fiel e o filho do casal não está mais vivo. Mas as metáforas comparativas são explícitas, em chave invertida, conforme notamos nos títulos de capítulos como “Calipso” (o quarto), “Nausicaä” (o décimo terceiro) ou “Penélope” (o décimo oitavo). O que ocorre em cada um deles, entretanto, abre espaço para as experimentações do autor, que exigem muita abnegação por parte de seus tradutores. Tanto que estes últimos passam a ser co-autores dos romances, de tão árduo que é este percurso. A edição brasileira que analisamos, a propósito, foi traduzida por Caetano W. Galindo, que dedicou mais de dez anos a esta diligência!
Exegetas desta obra organizaram um esquema que demonstra que cada um dos capítulos possui uma técnica específica de escrita, além de horários, locais, símbolos e até mesmo cores e órgãos do corpo humano diferentes. Demoramos a compreender quem são aqueles personagens, mas tudo faz sentido próximo ao final, visto que o compêndio de perguntas e respostas que caracteriza o décimo sétimo capítulo (“Ítaca”) converte-se numa verdadeira aula do uso da onisciência num processo literário.
Diante de todos estes aspectos, é mui aplaudível que algum cineasta ouse adaptar este livro, o que foi feito esplendidamente pelo norte-americano Joseph Strick [1923-2010], num filme que recebeu a capciosa tradução de “A Alucinação de Ulisses” (1967). Por causa da audácia demonstrada pelo realizador, junto ao co-roteirista Fred Haines [1936-2008], este filme mereceu a indicação ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. Não foi laureado, infelizmente, e causa estranhamento que este petardo fílmico não seja melhor conhecido. Falemos um pouco sobre ele, daqui por diante…
Tendo conseguido a façanha de linearizar o percurso deambulatório do judeu Leopold Bloom, respeitando a ordem dos capítulos do livro, este filme possui os cacoetes típicos do cinema britânico daquela época: a montagem é entrecortada e, numa demonstração de suprema invencionice, respeita o demorado etilismo do décimo quinto capítulo (“Circe”), iniciado num bordel, em que os protagonistas reagem aos devaneios de algumas prostitutas e fantasmas, num delírio sobremaneira felliniano. A transcrição do aguardado monólogo de Molly Bloom (Barbara Jefford), no desfecho, justifica o lastro de obra-prima que deve ser concedido a este filme. E não há problema em revelar os detalhes do enredo: se não forem conhecidos, o espectador periga ficar perdido em meio àquela sucessão de eventos estranhos – sobretudo se não tiver lido o romance do qual o roteiro foi proveniente.
Evitando-se a tentação de comparar se o livro ou o filme é melhor (algo desnecessário no processo adaptativo, já que cada uma das obras obedece a regras distintas de avaliação), chama a atenção o modo como o cineasta condensou alguns capítulos, evitou a menção a algumas personagens (a filha de Leopold, por exemplo, Millicent) e respeitou meticulosamente o brilhantismo consciencioso dos instantes finais. O preâmbulo protagonizado pelo jovem Stephen Dedalus (Maurice Roëves) ocupa menos de quinze minutos, enquanto, no livro, preenche três capítulos inteiros. Vemo-lo na escola em que ele leciona, onde pensa a frase que intitula este artigo e, mais tarde, é reencontrado por Leopold Bloom (Milo O’Shea) na sala de espera de uma maternidade. Os diálogos são evocativos em sua maior parte. Precisamos complementar o que ouvimos com os vagos relances informativos que, no filme, aparecem através de ‘flashbacks’ mui céleres. Num dos episódios mais famosos do romance, a masturbação que acontece numa praia, conta-se com a presença da hoje consagrada Fionnula Flanagan, interpretando a “sereia” manca Gertrude MacDowell, que arreganha as suas pernas para excitar sexualmente o protagonista…
Temas como antissemitismo, luto, (in)existência de Deus, traição matrimonial e muitos outros são despejados em meio às seqüências alucinantes do filme, como aquele em que um ciclope creditado apenas como “o cidadão” (Geoffrey Golden) corre atrás de Leopold com uma lata de lixo, irritado por causa das declarações judaicas deste último e pela sua cínica definição de nação como “uma porção de pessoas iguais vivendo num mesmo lugar”. É mister ressaltar que o roteiro reproduz vários dos ótimos chistes do romance, como quando reclamam que o padre Buck Mullingan (T. P. McKenna) preparou um chá muito forte e ele retruca: “quando eu preparo chá, eu preparo chá; quando eu preparo água, eu preparo água”!
Para quem ainda não teve acesso nem ao romance nem ao filme, ficam aqui as recomendações entusiasmadas: são ambos excelentes, mas não muito fáceis de serem compreendidos e/ou acompanhados. Requerem uma dedicação extremada e uma concentração minuciosa, ainda que, após algum tempo, as experiências de imersão revelem-se deliciosamente divertidas. Querem um exemplo? Que tal a comparação existente no já mencionado décimo sétimo capítulo do livro, quando a trajetória urinária de Stephen Dedalus é destacada por ser “mais alta, mais sibilante, que nas horas finais do dia anterior havia aumentado por ingestão diurética uma insistente pressão vesical”. Aliás, Joseph Strick gostou tanto deste desafio que voltaria a adaptar outro romance joyceano em 1977, quando realizou justamente “Retrato do Artista Quando Jovem”. Mesmo que ainda não tenhamo-lo visto, fica, desde já, a garantia de que também vale muitíssimo a pena!
Wesley Pereira de Castro.