Resenha de livro: Isaacman, Allen F.; Isaacman, B.S. Mozambique’s Samora Machel: A Life Cut Short. Athens: Ohio University Press, 2020, 258p.
Allen F. Isaacman é um historiador norte-americano especializado na história social da África Austral, e Barbara S. Isaacman é advogada e professora de direito. Na década de 1970, eles viveram e trabalharam em Moçambique durante dezessete meses. Eles publicaram vários livros, incluindo The Tradition of Resistance in Mozambique (1976), Mozambique: From Colonialism to Revolution (1983), Slavery and Beyond (2004) e Dams, Displacement, and the Delusion of Development (2013).
O livro em questão, Mozambique’s Samora Machel: A Life Cut Short, tem como fonte principal mais de vinte entrevistas feitas principalmente com pessoas que conviveram de perto com Samora Moisés Machel (1933-1986), que participou da luta de libertação e se tornou líder da Frelimo (a Frente de Libertação de Moçambique) e o primeiro presidente de Moçambique, com um governo de orientação socialista. Os autores consultaram extensa documentação do Centro de Documentação Samora Machel e apresentam vinte e três fotos da trajetória de Samora, por exemplo: fotos que mostram Samora no curso de enfermagem, entre guerrilheiros no campo, e fazendo discursos como presidente (pp. 74-75, 101-4, 133-36, 159-60, 197). O livro tem nove capítulos, além de um prólogo, uma conclusão e um prefácio escrito por Albie Sachs, um ativista sul-africano.
No prólogo, “The Challenge of Representation” (pp. 23-36), pode-se destacar a forma como os autores se situam em relação à história de Moçambique (p. 31) e admitem que não é possível ignorar a sua relação próxima com Samora e com vários membros da Frelimo, mas buscaram algum grau de crítica na análise. A Frelimo foi um movimento que participou na luta de libertação e tornou-se o partido governante. Está no poder desde a independência de Moçambique e seus membros tentam continuamente controlar as memórias históricas e produzir narrativas oficiais.
Os dois primeiros capítulos, “Living Colonialism” (pp. 37-50) e “The Early Political Education of Samora Machel” (pp. 51-67), são ricos em informações e testemunhos sobre a família, a educação e a vida cotidiana de Samora durante o período colonial em Moçambique. Samora é retratado como tendo orgulho de sua família, um homem que não rejeitou as crenças locais, que enfrentou dificuldades para estudar em escolas de missões cristãs e que testemunhou as arbitrariedades e crueldades do mundo colonial, algo que afetou moçambicanos no meio rural e no meio urbano. Isto supostamente explica a indignação e a proximidade de Samora com os movimentos anticolonialistas.
O terceiro e quarto capítulos, “The Struggle within the Struggle” (pp. 68-85) e “Samora and the Armed Struggle” (pp. 86-114), centram-se na Frelimo como movimento de libertação, enfatizando que as divisões dentro do movimento foram exacerbadas por divisões regionais e animosidades religiosas, com uma facção liderada por Eduardo Mondlane (1920-1969) e outra facção reunindo Uria Simango, Mateus Gwenjere e Lázaro Nkavandame. A última facção supostamente abrigava membros anti-brancos, suspeitos do ataque a Mondlane. A morte de Mondlane ocorreu em 1969 como resultado da explosão de um livro-bomba que foi enviado pelo correio.
O quinto capítulo, “Politics, Performance, and People’s Power” (pp. 115-47), talvez seja a melhor parte do livro. Recomenda uma determinada abordagem para analisar os discursos de Samora:
“A simples leitura dos discursos de Samora não capta a complexidade de suas performances. Seu repertório incluía o uso intencional de repetição, gramática incorreta, linguagem corporal e envolvimento com o público por meio de música, humor e sarcasmo.” (p. 123)
Os autores argumentam que os discursos e escritos de Samora revelam um projeto emancipatório com tons puritanos. Alguns testemunhos sugerem que ele teria sido austero e severo como presidente.
O sexto e sétimo capítulos (pp. 148-68, 169-86) colocam forte ênfase na desqualificação do movimento de oposição da Renamo (a Resistência Nacional Moçambicana) com a ideia de que seus membros agiram como terroristas e como elementos de desestabilização com o apoio dos regimes racistas da Rodésia e da África do Sul. Mas, em contraste, os autores apontam erros no governo de Samora entre 1977 e 1986, entre os erros estão: as políticas para camponeses e líderes tradicionais (Geffray 1991), os abusos de poder, os campos de reeducação, as medidas de realocação da população considerada improdutiva e a retórica belicosa contra a África do Sul.
Os últimos capítulos (pp. 187–216) centram-se nas suspeitas sobre os envolvidos no acidente que vitimou Samora e nos usos políticos da sua memória. O uso que os autores fazem do conceito de esquecimento organizado (Pitcher 2006) reflete de forma útil as tentativas de diminuir o significado de Samora depois que a Frelimo abandonou sua orientação marxista-leninista.
O mérito do livro é que ele retém algum grau de crítica. Não venera Samora nem simplesmente reproduz narrativas oficiais. Não simplifica o papel dos dissidentes da Frelimo e o papel da Renamo. E através dos depoimentos dos membros da Frelimo presentes no livro, os leitores podem ver como os recentes escândalos de corrupção envolvendo o ex-presidente Armando Emílio Guebuza afetaram significativamente as memórias históricas.
As tentativas de controlar as memórias históricas e criar narrativas oficiais em Moçambique são problematizadas na literatura especializada (Borges Coelho 2019; Dinerman 2006; Schafer 2007). O livro não dialoga com várias referências importantes que criticam as narrativas oficiais da Frelimo. Os últimos capítulos poderiam, assim, apontar para aspectos da trajetória de Samora que desafiam as narrativas oficiais.
Referências:
Borges Coelho, J.P. “Política e história contemporânea em Moçambique.” Revista de História 178(1): 19p., 2019.
Dinerman, A. Revolution, Counter-Revolution and Revisionism in Postcolonial Africa: The Case of Mozambique, 1975–1994. London: Routledge, 2006.
Geffray, C. A causa das armas: antropologia da guerra contemporânea em Moçambique. Porto: Afrontamento, 1991.
Isaacman, A.F.; Isaacman. B.S. The Tradition of Resistance in Mozambique: Anti-colonial Activity in the Zambezi Valley. London: Heinemann, 1976.
Isaacman, A.F.; Isaacman. B.S. Mozambique: From Colonialism to Revolution. Boulder: Westview, 1983.
Isaacman, A.F.; Isaacman. B.S. Slavery and Beyond: The Making of Men and Chikunda Ethnic Identities in the Unstable World of South-Central Africa, 1750–1920. London: Heinemann, 2004.
Isaacman, A.F.; Isaacman. B.S. Dams, Displacement, and the Delusion of Development: Cahora Bassa and Its Legacies in Mozambique. Athens: Ohio University Press, 2013.
Pitcher, M.A. “Forgetting from Above and Memory from Below: Strategies of Legitimation and Struggle in Post-Socialist Mozambique.” Africa 76(1): 88–112, 2006.
Schafer, J. Soldiers at Peace: Veterans and Society after the Civil War in Mozambique. New York: Palgrave, 2007.