Parte 4 – A relação da monarquia papal com a comunidade cristã europeia.
Inocêncio III (1198-1216) implementou o pensamento político da teocracia pontificial, que fazia a distinção entre a plena soberania que só o papa detém, e o poder político que os soberanos recebem directamente de Deus. Com ele, o poder espiritual, relacionado com os assuntos sagrados, afirma-se como sendo superior ao poder temporal, aqueles dos monarcas e imperadores, que se prendia com questões terrestres.
Este papa dá início ao processo de centralização romana, marcada pelo desenvolvimento de uma importante administração eclesiástica e pelos progressos da fiscalidade pontifical. Encorajou a conquista e a cristianização das regiões do Ocidente ainda não convertidas, procurou estabelecer e reforçar a sua autoridade temporal sobre Roma, isto é, não só como representante espiritual, mas também como governante, e mediou as competições entre os pretendentes ao Império.
Assim, Inocêncio III expandia a sua influência por toda a Europa, criando uma forma de feudalidade papal, tornando-se soberano espiritual da Inglaterra, Portugal, Aragão, Dinamarca, Polônia, Boêmia, Hungria, Dalmácia e outros territórios. Todos estes reinos se tornam vassalos, incontestáveis, da Santa Sé. A influência da Igreja era de tal forma importante que os seus tribunais também julgavam casos do domínio político, tanto que entre 1050 e 1350 os funcionários do tribunal central de Roma aumentaram dez vezes o seu número. A celebração do IV Concílio Ecuménico de Latrão (1215) marcou a apoteose do sistema teocrático desenvolvido por si.
Por estes motivos, é necessário abordar a relação do papado, enquanto autoridade autónoma e independente, e cada vez mais politizada, com os restantes reinos e territórios europeus. Neste ponto é também conveniente dizer que, enquanto os papas do século XI foram monges, os do século XII eram júris-consultos canónicos, ansioso por “defender a conduta apropriada e por clarificar e distinguir aquilo que tinha sido, anteriormente, a ambígua, área de intercção do braço secular com o eclesiástico” (p.218).
A península itálica encontrava-se dividida em três partes, controladas por diferentes autoridades políticas. A Norte e a Este o controlo dos territórios estava sob a alçada do sacro-império romano-germânico, a parte central era composta pelos estados pontifícios sendo dominada pelo papado, e o Sul, que incluía o reino da Sicília, estava sob domínio normando.
No tempo de Inocêncio III, o papado continuava íntimo do destino do sacro-império, onde os domínios do império continuavam a alargar-se para sul e a tradição de dependência entre imperadores e papas ainda se manifestava através do uso da unção sagrada, prática que Inocêncio III defendia.
A ideia de que sem a unção sagrada o imperador não seria legítimo, encontra oposição com a dinastia Hohenstaufen, também chamada dinastia Staufer, uma dinastia alemã que governou o Sacro Império Romano de 1138 a 1208 e de 1212 a 1254, tendo ascendido ao poder com Conrado III. Para os Hohenstaufen a unção sagrada era vista como uma bênção sem qualquer valor jurídico para a validação do título de imperador.
Esta dinastia tinha por rival uma família da Saxónia, os Welfen, com a qual se envolvia em constantes conflitos, os quais foram instrumentalizados por Inocêncio III a favor do papado. Esta dinastia foi ainda responsável por estender os seus domínios ao reino da Sicília, pela via do matrimónio e posterior ocupação com homens da confiança do império.
Assim, os estados pontifícios estavam cada vez mais rodeados de influências germânicas.
Neste sentido, o próprio contexto político da Itália central estava longe de ser pacífico. O papado encontrava-se chefiada por elites familiares desobedientes ao papa e quando Inocêncio III se tornou papa, o império sacro-germânico havia cercado o papado e dominado a zona Norte e Sul, situação que, posteriormente, acabou por resultar em conflitos de sucessão entre dois partidos. Um partido elegeu Filipe da Suábia, em 1198, defensor das políticas de Hohenstaufen, o outro elegeu Otão IV de Brunsvique, no mesmo ano. Esta situação originou uma longa guerra civil no seio do império, dando margem para Inocêncio III reorganizar Roma e os Estados Pontifícios com pessoas da sua confiança e impor a sua soberania, recuperando territórios e estabelecendo alianças, como foi o caso da “Liga Lombarda”. Inocêncio conseguiu ainda estender o seu poder ao reino da Sicília, de onde liderou várias guerras durante um período de dez anos, contra os nobres alemães, tendo conseguido suprimir de toda a península o controlo do sacro-império.
Assim que Inocêncio III conseguiu estabilizar o seu poder na península, voltou-se para os conflitos que o império atravessava. Otão IV era parcial ao papa e Filipe da Suábia apoiava a independência da Igreja. A princípio o papa Inocêncio III manteve-se neutro e expôs a sua opinião na bula Deliberatio Domini Papae Inocentii de 1200. Mais tarde tornou-se parcial a Otão IV, unguindo-o como líder do sacro-império, caso que encontrou retaliação por parte de Filipe da Suábia (decreto Venerabilem). Depois de um período de discussão sobre a preponderância do papado na legitimação do poder temporal, Filipe é assassinado e Otão IV torna-se imperador em 1209. Entretanto Otão IV quebra os seus juramentos quando invade o reino da Sicília, nesta altura pertencente ao papado, sobre o pretexto de ser território do império. Inocêncio III excomunga o imperador, decisão que é acatada por todos, e é eleito Frederico II, um elo de ligação amigável entre o império e o papado, dada a sua proximidade a Inocêncio III, mas que só ascende definitivamente ao poder em 1215, após a derrota de Otão IV.
Assim, Inocêncio III, tendo interferido nos assuntos e na instabilidade do império, consegue estabelecer uma nova ordem.
Quanto às relações com Inglaterra, por volta de 1205, problemas com as eleições dos arcebispos ingleses levaram a que Inocêncio III resolvesse as divergências designando ele próprio um candidato, Stephen Langton, caso que não foi aceite pelo rei João. A situação derivou num conflito com o papado.
Em 1212, Inocêncio III depôs oficialmente João, deu o Reino da Inglaterra ao rei Filipe II da França, sob a condição deste executar a sentença conquistando a Inglaterra numa cruzada contra João. Perante esta ofensiva João rendeu-se, reconheceu o arcebispo designado pelo papa e jurou vassalagem à Santa Sé. Uma vez mais, a influência e a nova ordem da imposta pelo papado prevalecia sobre os interesses do poder temporal. Contudo, apesar dos esforços de ambos, os nobres ingleses, descontentes com a governação de João e aproveitando o seu enfraquecimento político quiseram impor a Magna Carta em 1215, caso que fora apoiado pelo arcebispo que Inocêncio nomeara. Como esta situação era uma violação dos direitos de vassalagem do rei inglês para com a Santa Sé, Inocêncio III depôs o arcebispo e João empreendeu uma guerra, a Primeira Guerra dos Barões, contra os senhores revoltosos. Porém, quer João, quer Inocêncio III vieram a falecer em 1216.
A intervenção do papa em França prendeu-se com questões matrimoniais, pois, o monarca Filipe, um governante que dispunha facilmente dos matrimónios e de divórcios para alcançar objectivos políticos, não era bem visto pelo papa, nem pela sua esposa legítima, Ingeborg, que recorreu à Santa Sé para obter apoio. Depois de várias intimações feitas pelo papado, Filipe constatou que a melhor opção para manter boas relações eclesiástica, era respeitando a tradição matrimonial que havia sido estabelecida, independentemente dos seus interesses como governante. A relação de França com o papado também se verificou no plano militar e político, por exemplo, aquando do acordo de paz assinado em Vexin, com o rei Ricardo, Coração e Leão, de Inglaterra, ou quando se verificou a oportunidade de levar a cabo a tal cruzada contra Inglaterra, contra o rei João, mas que não sucedeu. Inocêncio III também intercedeu nos assuntos da Universidade de Paris, do qual havia sido estudante, tendo reformulado os seus estatutos.
As relações com os reinos da Península Ibérica eram essencialmente de foro matrimonial e fiscal, verificando-se que os monarcas não respeitavam as regras impostas da Santa Sé, e frequentemente deixavam de pagar os seus tributos. O papel de Inocêncio III na Península Ibérica encontrou especial importâncias nos movimentos de reconquista de territórios aos mouros, aos quais era parcial.
Relativamente à escandinavia, Inocêncio III também desempenhou um papel de relevo, defendendo que os bispos deviam ser eleitos de forma livre, sem intervenção dos senhores, e auxiliando as empreitadas militares contra os pagãos do Norte, nomeadamente durante as “Cruzadas do Norte”.
No leste europeu, por exemplo, na Polónia, encetou uma reforma do clero, exigiu tributo anual, controlou a interferência da aristocracia na colecta do dízimo e condenou um monarca, o rei Ladislau III, por perseguição ao seu bispo. Na Húngria, Inocêncio III, intercedeu na disputa pelo trono que se arrastava entre dois monarcas, tendo coroado aquele que demonstrou obediência ao trono papal, Emérico. No tocante ao reino da Bulgária, este auxiliou a sua fundação com base no juramento da obediência espiritual à Santa Sé por parte do monarca.
Por esta altura, em 1190, no leste europeu, é também fundada a Ordem dos Cavaleiros Teutónicos, uma ordem germânica que estava vinculada à Igreja Católica, por investidura do papa Clemente III, e que interferia nos assuntos religiosos do leste europeu sobretudo na Polónia, Húngria e Estónia, apesar do seu objectivo inicial ter sido a Palestina.
Quanto a Kiev, na Rússia, atravessava uma fase de fragmentação dos seus territórios devido a conflitos na sucessão, enquanto testemunhava o enfraquecimento dos laços com a Igreja Ortodoxa, no decurso da queda de Constantinopla, em 1204. Mais tarde, a ofensiva dos cavaleiros mongóis, que investiram por volta de 1223, ambicionando o controlo de Kiev, provocou graves baixas aos russos durante décadas de contendas. O sacro império romano-germânico verificou neste conflito uma oportunidade de estender os seus territórios para leste, colocando as forças militares dos cavaleiros teutónicos no terreno. O reino da Rússia vendo-se atacada em várias frentes, sucumbiu aos mongóis e tornou-se seu vassalo. O príncipe Alexandre Nevsky recebe então o título grão-ducal que S. Vladimir tinha detido. A Rússia acabou por crescer economicamente sob o domínio mongol e os seus territórios a oeste tornaram-se na principal artéria de comércio entre o mar Báltico para o mar do Norte, enquanto o rio Volga era decisivo para o comércio com o mediterrâneo.
No concernente às relações com o povo hebreu é comumente aceite pelos historiadores que os estados papais tinham por hábito proteger os judeus das conversões forçadas, concedendo-lhes frequentemente asilo político, porém, impunham impostos e proibições específicas contra eles.
Em suma, as relações entre o papado e os reinos europeus foram de natureza dinástica, política e religiosa, sendo que o grande objectivo da Santa Sé foi afirmar-se como senhor feudal, incontestável, dos monarcas e imperadores, vassalos desse trono antes de qualquer outro. Em termos de estruturas, verifica-se que a Germânia detinha um sistema e organização dinástica e económica comuns à Itália, e a Rússia com o restante leste eslavo.
Bibliografia
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Uma resposta
Estou aqui há pouco mais de uma hora lendo, fazendo anotações, pegando material para novas pesquisas. Que série maravilhosa que você escreveu, Diana. Meus parabéns!