Quando as brasileiras Beatriz Souza e Rebeca Andrade receberam as medalhas de Ouro — respectivamente, nas modalidades Judô e Ginástica Artística — nas Olimpíadas de Paris, em 2024, houve a necessidade, por parte de alguns órgãos midiáticos, de ressaltar que ambas são mulheres negras, e que estas conquistas são importantíssimas, em termos de visibilidade e motivação. Infelizmente, entretanto, houve quem se irritasse diante disso, reclamando que os apanágios raciais das atletas seriam irrelevantes em suas conquistas. Uma rápida pesquisa acerca das condições sociais das mesmas, antes de se dedicarem aos esportes, revela que, sim, é essencial que enfatizemos as suas contribuições identitárias!
Aproveitando-se este gancho noticioso, convém recomendar um filme extraordinário, a estréia de uma cineasta negra na direção de longas-metragens, que, por um determinado motivo, é sobremaneira ignorado nos estudos convencionais sobre cinema: além de ser esplendoroso, “Filhas do Pó” (1991, de Julie Dash) chama a atenção pela maneira inteligente com que constrói a sua narrativa, concatenando diversas situações geracionais através de tramas que refutam a teleologia clássica. As corajosas atitudes das mulheres da família Peazant ocorrem de maneira simultânea, ainda que em diferentes temporalidades. E todas elas afetam os destinos de uma comunidade de descendentes de pessoas escravizadas, que viveram isoladas por muito tempo, em Ibo Landing, uma região insular entre os Estados de Georgia e Carolina do Sul, no Sudeste dos EUA.
Narrado por uma personagem creditada como “a criança não nascida” (Kay-Lynn Warren), este filme conta as histórias de algumas mulheres marcadas pelo trauma do estupro, sendo que cada uma delas reage distintamente a esta mácula: Mary Amarela (Barbara-O), por exemplo, surge com uma amante, Trula (Trula Hoosier), e é tratada como pária por alguns de seus parentes, por causa de seu lesbianismo indisfarçado; Eula (Alva Rogers), por sua vez, sofre com a desconfiança de seu marido Eli (Adisa Anderson), que desconfia que sua esposa tenha engravidado do estupro em pauta. Paralelamente, Iona (Bahni Turpin) apaixona-se por um nativo cherokee (M. Cochise Anderson), e resiste à decisão de sua mãe em deixar a ilha em que vivem…
O enredo tem como fato central os anseios migratórios surgidos em 1902, quando alguns membros da família Peazant são convencidos por parentes, agora cristãos, que lhes dizem que os velhos hábitos ancestrais devem ser abandonados, e que eles devem partir para as regiões setentrionais do continente. A tataravó da narradora, Nana (Cora Lee Day), matriarca da família Peazant, insiste em permanecer no local onde seus ancestrais alforriados “escolheram sobreviver”, defendendo a continuidade das tradições que unificaram, por séculos, “as crianças e as almas velhas”. O fotógrafo Snead (Tommy Hicks), noivo de uma das netas de Nana, conversa com os moradores da região e fica fascinado ao ouvir os relatos do muçulmano Bilal Muhammad (Umar Abdurrahman), que fôra aprisionado numa região africana colonizada pelos franceses e, depois de ser acolhido na ilha onde se passa a trama, pela família Peazant, torna-se uma liderança local. Teria ele alguma influência na tentativa de persuadir os seus convivas a não abandoarem a ilha?
Além da riqueza de entrelaçar todos estes dilemas humanos, o roteiro escrito pela própria diretora destaca-se por utilizar o dialeto Gullah, conferindo ainda mais credibilidade e autenticidade aos dramas daquelas mulheres. A fotografia de Arthur Jafa é belíssima, bem como a trilha musical de John Barnes. Há momentos encantatórios, como as diversas tentativas de Snead para fotografar os membros da família Peazant, ou os instantes em que crianças brincam na praia ou mulheres conversam em salgueiros. Os seus vestidos alvos também confirmam a magnificência dos figurinos, numa produção que deveria ser bastante laureada nas premiações cinematográficas daquela temporada, mas que foi indicada apenas em festivais independentes. A diretora, que, nos anos posteriores, continuou a sua carreira em trabalhos televisivos, foi muito exitosa ao rememorar os relatos literários de importantes autoras afro-americanas, além de adotar um tipo de narrativa que emula o realismo mágico latino-americano. As estruturas racistas da indústria relegam-na, geralmente, a menções exóticas em enciclopédias, quando ela, ainda viva, é quase desconhecida por muitos cinéfilos. Nota-se o porquê de, neste caso e nos demais mencionados, ser importantíssimo enfatizar que ela é negra?
Wesley Pereira de Castro.
Uma resposta
Sim Caro Wesley, Sim. Infelizmente a cor da pele ainda é um divisor de águas, miseravelmente significante. Curiosamente Você chama à colação um bravo povo do delta do Niger, no Golfo da Guiné, que lá vive com outros povos, os Igbo, que protagonizaram um terrível episódio na Ilha de São Simão, na Geórgia, EUA, no local que ficou conhecido como ‘Igbo landing’, onde um grupo desse povo notável praticou o suicídio colectivo, para fugir a escravidão. Sim, tristemente ainda nos cabe destacar os “apanágios raciais” das pessoas notórias.
Com o abraço do Helder Paraná Do Coutto.