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A observação histórica

A observação histórica

O presente texto debruça-se sobre a análise da construção do conhecimento histórico, feita por Marc Bloch, no capítulo II da sua obra “Introdução à História”. Objecto, características, problemáticas, suportes e cadeia de transmissão dos testemunhos, são os assuntos que compõem a discussão e sobre os quais se ocupam as próximas linhas.

Bloch observou que é de senso comum crer que o conhecimento do passado resulta de uma observação indirecta alicerçada em testemunhos, mas demonstra que esta acepção tem nuances. Primeiramente porque a observação directa não se aplica apenas ao passado longínquo mas também aos acontecimentos recentes (seja por quem não os experienciou directamente e os procura entender, seja por quem os viveu, mas procura alargar o horizonte da sua compreensão), e segundo, porque essas testemunhas também não funcionam como verdades absolutas. Estas estão limitadas pela parcialidade, perspectiva, intenção e pelo próprio funcionamento da memória humana.

O autor questionou então a qualidade de “indirecto”: “Será certo ser sempre a tal ponto “indirecta” a observação do passado, mesmo de um passado remoto?” (p.104).  No caso das fontes históricas escritas a observação será sempre indirecta, pois baseia-se num conteúdo limitado às características acima enunciadas e não na experiência em si. Mesmo vivenciando uma determinada experiência, nunca é possível recriá-la. É um momento que ao ser traduzido estará obrigatoriamente a ser filtrado. Contudo, no que respeita aos vestígios arqueológicos, a observação é feita directamente sobre o objecto, ainda que o significado possa ser desconhecido, e acontece no momento presente. Disse o autor que este privilégio concedido pelos arquivos da terra, permitiria ao historiador que se apoiasse neles, tanto quanto nas fontes escritas, obter um vislumbre mais completo do enquadramento do seu objecto de estudo. A aliança multidisciplinar promovida pela Escola dos Annales está bem patente nesta apreciação feita por Bloch.

Após debate em torno do objecto da observação histórica, “convém definir as indiscutíveis particularidades da observação histórica” (p.107). Das características enumeradas por Bloch, a primeira é que a construção do conhecimento histórico se faz por vestígios, sendo ilusório considerar a possibilidade de uma narrativa linear contida nos testemunhos ou nos objectos. Segundo, independentemente da distância ou proximidade do objecto de estudo, a observação não é necessariamente mais ou menos directa, ou mais ou menos privilegiada, estando igualmente sujeita a perdas de informação, omissões e falsos testemunhos. Em terceiro lugar, o passado não se modifica em caso algum, mas o conhecimento sobre o passado sim, construindo-se permanentemente à luz de novos métodos, de novas fontes ou de novas necessidades.

Dentro desta relação de aspectos, é ainda necessário versar sobre as particularidades dos testemunhos subjacentes ao processo. Bloch determinou que existem dois tipos: os voluntários, que registam informação com a intenção de dar a conhecer um determinado episódio, como aconteceu com as crónicas reais, e os involuntários, cuja intenção não era informar todo um conjunto de pessoas, conforme sucede com a correspondência privada ou com documentos de natureza confidencial. Não obstante, em ambos os casos podem suceder informações parciais ou falsos relatos. Daí que o autor insista na necessidade de questionar as fontes, e de evitar a aceitação literal e absoluta dos conteúdos. Se há momento de ruptura digno de nota entre o método difundido pela Escola dos Annales (da qual Marc Bloch é um dos fundadores) e a tradição historiográfica anterior, é o momento em que o método empregue na interpretação das fontes se torna inquisitivo, atento, hesitante, suspeito e contestatário.

No entanto, Bloch, reconheceu que no caso dos testemunhos voluntários, o seu contributo na reconstituição cronológica é relevante e, no caso dos involuntários, a contribuição reporta-se à contextualização das circunstâncias. Destarte, ainda que contenham mentiras, a sua concepção não deixa de ser um produto genuíno do momento.
Bloch adverte que a relação existente entre os testemunhos e o objecto de estudo não é necessariamente linear: “Admite-se que o historiador de uma época em que a máquina é rainha ignore como são constituídas e se modificaram as máquinas?” (p.115). Desengane-se quem considera que ao historiador cabe apenas andar na superfície dos testemunhos e dos fenómenos, sem a responsabilidade de os examinar em todas as vertentes. Se para compreender um reinado bastassem as crónicas…

Na retaguarda do conhecimento histórico está uma pluralidade de técnicas de investigação e de investimento multidisciplinar.

O autor dedicou a última secção do capítulo à transmissão dos testemunhos, acto sem o qual não se observariam os fenómenos humanos na longa duração. A conservação das fontes é um pressuposto do processo de transmissão. Como tal, Marc Bloch incentivou um maior investimento na investigação e na produção de conhecimentos com o intuito de obter uma favorável organização e divulgação dos testemunhos conhecidos. Adverte, porém, que abundância não é sinónimo de qualidade. Dizia o autor que a qualquer estudo devia estar subjacente um capítulo dedicado à metodologia científica adoptada onde fosse claro o processo pelo qual o investigador apurou as suas inferências. Foi graças a esta visão que hoje só são aceites e considerados os artigos, dissertações e teses cujo método esteja cientificamente demonstrado e aliado à transparência bibliográfica. Mais um alicerce concedido pela Escola dos Annales.

Bloch termina a sua argumentação retomando o tema da conservação dos testemunhos, que tanto depende da vontade humana, das circunstâncias físicas que atrasaram ou evitaram a sua perda, como de outros factores (mais difíceis de determinar) que se deram nos casos em que os testemunhos sobreviveram a catástrofes naturais (ex.: incêndios), ou a momentos de destruição voluntária (ex.: períodos bélicos, fundamentalismo religioso ou oportunismo). Assim, o autor deixou reforçada a premência vinculada à elaboração de instrumentos de protecção da informação que previnam a “aposta no destino” (p.121).

Bloch, M., Bloch, É., Le Goff, J.
(1997).  A observação histórica. In M. Castro (Ed.),
Introdução à História (pp.103-121).
Mem Martins: Publicações Europa-América, Lda.

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