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A legitimidade da História e do ofício do historiador, segundo Marc Bloch

A legitimidade da História e do ofício do historiador, segundo Marc Bloch

O capítulo introdutório da obra “Introdução à História” de Marc Bloch versa sobre a legitimidade da História e do ofício do historiador. Previamente ao desenvolvimento, Bloch, confessa a dificuldade em exprimir considerações sobre a matéria em causa própria, mas reconhece a pertinência de o fazer para o público ocidental. Logo aqui somos confrontados com uma conclusão digna de nota, a de que o historiador é portador de responsabilidades, social e pedagógica, não só perante os seus pares mas também perante o seu colectivo. Deve justificar a sua actividade enquanto mais valia para a construção da identidade cultural, através da paz e do conhecimento, e disseminá-los geração após geração. Dois compromissos de natureza delicada e relevante que o autor concretizou justificando sempre os seus pontos de vista ao longo de todo o capítulo.

A orientação do ensaio para o contexto da civilização ocidental não é uma forma de descriminação relativamente a outras culturas e também não é um acaso. O ocidente partilha de uma identidade cultural e espiritual comum. Explica que os pilares culturais e religiosos ocidentais assentam em narrativas sobre a passagem do tempo e transformação do espaço. A sua tradição intelectual é o uso da memória colectiva. As manifestações concretas da prática do registo e celebração do passado são a herança historiógrafa helénica e latina e, posteriormente, a herança cristã, raiz de longas narrativas consideradas sagradas, acerca da origem e destino da humanidade na longa duração. Refere que a restante produção cultural – artística, literária, erudita ou popular – recorre sistematicamente a lições e “ecos do passado” (p.76). (Não só! Está igualmente imbuída de espiritualidade e/ou de empirismo, todavia é, de facto, detectável uma sistemática evocação do passado). Bloch poderá estar a referir-se às crónicas históricas dos líderes e dos povos clássicos, medievais e modernos, à recorrente recuperação de estilos artísticos pretéritos na arquitectura e na literatura, às exaltações imperialistas ou nacionalistas nos desenvolvimentos políticos, ou até à perpetuação de mitos e lendas exaltantes da santidade ou legitimidade de figuras históricas.  Em suma, uma das formas mais directas de reconhecer a legitimidade da História como parte integrante de um sistema é por intermédio da tradição, porém, Bloch adverte, não é sinónimo de perpetuação. Indica que a ruptura pode ocorrer por via de más interpretações da História e consequente descrédito. Quantas vezes inventámos tradições, forçámos respostas e tirámos conclusões onde estas não existiam na História, mas foram justificadas e validadas porque serviram um propósito “superior”? Precisamente, Bloch foi vítima mortal de um contexto político que manipulou e celebrou erradamente a História europeia.

Neste capítulo introdutório, Bloch aborda outra forma de legitimar o papel da História: a sua capacidade de sedução. Transversal ao leitor de romances e ao investigador que se debruça sobre fontes documentais, atrai pela sua habilidade em entreter a imaginação, sem que retire seriedade e rigor ao ofício, pelo contrário, pois “o valor de uma pesquisa não se mede, em tudo e por tudo, pela sua capacidade de servir a acção” (p.77). A curiosidade desinteressada e a compreensão dos factos, dois actos naturalmente imbuídos de prazer, são fundamentais para comprovar a vocação para qualquer ramo científico. “Antes do desejo de conhecimento, o simples gosto; antes da obra da ciência plenamente consciente dos seus fins, o instinto a que ela conduz (…)” (p.77). Com isto se declara que nada é tão verdadeiro na execução ofício do que a genuína satisfação intelectual que este proporciona ao seu artíficie.

Porém, não é apenas o prazer que justifica o esforço intelectual ou que o valida, é também o seu potencial útil. Neste ponto o autor expõe a ignorância dos que desacreditam a História e argumenta a favor do seu merecido posicionamento entre as ciências. Demonstra a natureza científica do ramo por intermédio da realidade normativa e metodológica a que está sujeita, diversa, definida e criteriosa. Longe de ser simples. Habilitada para analisar, selecionar e processar dados quantitativos e qualitativos, é capaz de se adaptar a velhas e novas tendências empregando métodos de apuramento da certeza (não da verdade!), em prole de um estudo e produção intelectual em movimento, ciente de que está sujeito à cíclica tentativa-erro. Tudo isto faz do historiador um cientista em laboratório. A experiência e observação levaram-no a reconhecer que, enquanto ciência, “a História não é apenas uma ciência em marcha. É também uma ciência na infância (…) ou, melhor dizendo, velha sob a forma embrionária da narrativa, durante muito tempo atravancada de ficções, durante mais tempo ainda vinculada aos eventos mais imediatamente perceptíveis (….) Esforça-se, finalmente, por penetrar além dos factos à superfície” (p.81), e por rejeitar vertentes de pensamento redundantes, conclusões especulativas, tendências de exclusividade, posturas de irrefutabilidade e a típica rigidez dos eruditos.

O capítulo termina com algumas constatações relativas ao percurso da História. O autor declara que a sua actual posição é vantajosa em relação ao passado, ocasião em que tentaram instituí-la como um modelo intelectual uniforme, ou, por outro lado, como um discurso filosófico repetitivo. O autor justifica: vantajosa porque se substituiu “(…) o certo pelo infinitamente provável; o rigorosamente mensurável pela noção da eterna relatividade da medida” (p.83). Significa que a subjectividade das inferências não enfraquece o ofício e o produto da História, pelo contrário, potencia novas oportunidades de trabalho com um ponto de partida. Independentemente do formato da sua evolução, a utilidade e razão de ser da História tem sido validada pela quantidade de gerações que se dedicaram a compreendê-la e lhe acrescentarem valor. Um argumento que Bloch deixou também como apelo.

Em síntese, Marc Bloch, propõe que a legitimidade da História e do historiador se constatem na tradição, no prazer, no método e na formação de novas gerações.

É premente a pertinência do momento actual para abordar e reforçar o debate em torno do propósito das ciências, tal como foi na época de Bloch. Vive-se uma crise de identidade preocupante e decadente: celebra-se a gratificação instantânea como uma façanha de êxito em prole de uma contribuição activa para a sociedade por via do trabalho, o preconceito e a intolerância estão ao rubro entre ignorantes e eruditos, a política é um ciclo vicioso entre lobbies económicos e maiorias de abstenção, o papel da cultura foi delegado para o fundo da cadeia alimentar e o aumento da dependência da tecnologia e dos meios digitais empobreceram o raciocínio lógico e a inteligência emocional, no plano individual e colectivo. Face a isto é de considerar que podemos estar a negligenciar as matérias de estudo e os princípios que, na paz e no conflito, têm vindo a contribuir para o desenvolvimento da humanidade e que lhe tem permitido compreender o Presente sem se basear apenas nas suas necessidades primárias.      

Bibliografia
Bloch, M., Bloch, É., Le Goff, J. (1997).  Introdução. In M. Castro (Ed.), Introdução à história (pp.75-86). Mem Martins: Publicações Europa-América, Lda.

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