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Todos precisamos de uma razão para acordar de manhã: e o trabalho até nem é a principal razão

Todos precisamos de uma razão para acordar de manhã: e o trabalho até nem é a principal razão

“Uma pessoa tem que se entreter com qualquer coisa”. Foi assim que um familiar respondeu a “o que está a fazer?”, num reencontro recente entre o autor deste texto e o familiar em questão. Nada de estranho neste diálogo trivial, não fosse o interlocutor, com mais de 85 anos, se referir na sua resposta ao arranjo de móveis de madeira, apesar das suas limitações físicas e reduzida mobilidade.

Uma semana depois deste episódio, começava em Lisboa a Web Summit, com mais de 70 mil participantes. Um dos momentos mais exóticos foi a apresentação in tandem dos robots Sophia e Phil K. Dick, da Hanson Robotics, que mostraram os seus dotes humanos, e com a primeira a declarar a certa altura que “É importante para mim ser como um humano”.

Nesta parada dos mais recentes avanços tecnológicos na indústria digital, abundou discussão e reflexão sobre o futuro do mundo não digital, e particularmente do futuro do trabalho. Ao pessimismo dos que vaticinam uma substituição progressiva de trabalhadores humanos por robots inteligentes, contrapõe-se o otimismo daqueles que vêm nessa permuta a possibilidade de se vir a libertar tempo para realizar trabalho mais mental, deixando para os organismos cibernéticos as tarefas mais abjetas. Esta última postura é algo naïve, pois parece assumir que todos desejam entregar os trabalhos mais fastidiosos aos robots. Há que notar que nem toda a gente quer, pode, ou está capacitada, para assumir tarefas mais mentais. Muitos são completamente felizes a executar atividades vistas por outros como rotineiras.

Ainda que ambas as posições tenham mérito, elas não captam o que está verdadeiramente em causa na substituição em larga escala do trabalho humano por trabalho robotizado. A discussão não é sobre se o trabalhador humano é substituído por máquinas. Isso é certamente verdade para muitas profissões, assim como é igualmente certo que muitos novos ofícios farão a sua entrada no sistema. O que está em causa é o receio implícito do não haver nada para fazer, no cenário utópico de uma substituição total.

Tal como o familiar no parágrafo inicial, as pessoas necessitam “entreter-se” com qualquer coisa. Nada pode ser mais vazio na vida, do que ter uma vida vazia de significado. Uma das obras mais profundas sobre a complexa questão do sentido da vida é provavelmente Man’s search for meaning, do neurologista e psiquiatra austríaco Viktor Frankl, um sobrevivente de Auschwitz e Dachau. Para Frankl o sentido da existência está em encontrar um propósito para a vida, ou seja, consiste em encontrar a razão pela qual se é e se existe. Assim como o corpo exige comida, água, e descanso, para funcionar em pleno, também a mente requer sentido, significado e propósito, não apenas para a realidade envolvente à pessoa, mas para justificar a sua própria existência. O tema será desenvolvido num próximo texto, mas por agora basta afirmar que essa busca por propósito pode dar-se de muitas formas, como por exemplo manter-se ocupado e sentir que se faz algo útil, nem que seja reparando móveis.

A moderna organização da sociedade coloca o trabalho no centro desta busca. E não apenas o trabalho; também o dinheiro e o consumismo aparecem como elementos centrais num paradigma focado num crescimento económico perpétuo. É assim que inconscientemente se instituiu que não são apenas as necessidades financeiras individuais que o trabalho permite resolver; também será através do trabalho que se consegue o crescimento coletivo, sobretudo económico, que as pessoas se desenvolvem enquanto tal e se relacionam com outras pessoas, que a riqueza comum é gerada e acumulada, que se planeia o futuro das novas gerações, e que a sociedade se organiza de forma ordeira e democrática. O trabalho tornou-se de tal forma essencial, que deixou de ser apenas um veículo para se atingirem objetivos, para passar a ser identitário e definidor do próprio ser humano: “eu sou o que eu faço”. E se alguém nada faz, então é vista como sendo ninguém, ou como alguém de segunda. E esta é a consequência mais perversa da centralidade exagerada do trabalho na sociedade: alguns são, porque fazem; os outros não fazem, logo não são.

Percebe-se agora o medo de uma vida em que são os robots a executar o trabalho: é uma vida desprovida de identidade, de sentido, de propósito. Uma vida em que toda a gente é acometida para a categoria dos que não são. É um terror que a sociedade moderna não está preparada para enfrentar.

E, todavia, existem vastas franjas da sociedade que já se encontram nestas condições: os aposentados, os desempregados, os desfavorecidos, os em situação de emprego precário, e todos os outros que por qualquer outra razão não estejam a laborar. Ora, ainda que a ligação destas pessoas ao trabalho seja ténue ou inexistente, isso não significa que elas não busquem um propósito. Simplesmente essa procura é feita por outras vias, e não pelo trabalho. O referido familiar intenta encontrar tal desígnio através de pequenas tarefas e atividades, realizadas diariamente: arranjar uns móveis velhos, cuidar dos animais, tratar do pequeno pedaço de terra…, manter-se entretido.

E mesmo entre os que estão inseridos na vida ativa, existem milhões de pessoas que destinam ao trabalho uma ínfima parcela das suas existências, preferindo dedicar-se a outras dimensões da vida, como a família, as amizades, a ajuda aos outros, ou o foco em si próprio.

Por último, impõe-se um pensamento para os que encaram o trabalho como veículo basilar na sua viagem existencial. Nem sempre o trabalho foi tão definitivo como o é no momento presente. De facto, a atual organização do trabalho no mundo desenvolvido terá emergido entre os séculos XVII e XVIII, por altura da revolução industrial. O influxo de riquezas do Mundo Novo, o desenvolvimento do comércio, dos mercados e dos sistemas bancários, o uso generalizado do papel-moeda, e o aumento generalizado do desenvolvimento tecnológico, são alguns dos fatores que permitiram às sociedades medievais transitar para uma nova organização social, política, e económica, em que o trabalho é o modo preferível de responder às necessidades atrás enunciadas.

Assumindo que as pessoas nas sociedades medievais também buscavam um propósito para a vida, mas que o fariam sem uma profissão no sentido que hoje lhe é dado, então deverá aceitar-se que num futuro mundo laboral automatizado e robotizado, o ser humano seja capaz de encontrar alternativas para responder à questão do propósito.

Assim, para além da preocupação sobre o quando e o como o trabalho humano será substituído pelo trabalho robotizado, a reflexão deveria incidir também sobre as múltiplas possibilidades de realização do sentido da vida que se abrem ao Homem, num mundo em que os modos de produção de bens e serviços estão assegurados por servos mecânicos. Certamente que ainda serão necessários empregados humanos em muitas atividades, mas o potencial oferecido pelo trabalho robotizado poderá contribuir para redefinir a relevância do trabalho na sociedade e, na sequência, eliminar a divisão entre os que são-porque-trabalham, e os que não-são-porque-não-trabalham. Talvez os robots permitam finalmente viver um mundo sem divisões, como cantou John Lennon.

Imagem (Free-Photos) em Pixabay

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