Ao discutir sobre globalização e comunidade, vimos que a perspectiva do sistema global rejeita e combate os princípios da comunidade. O mundo utópico sem fronteiras, uno, livre para a circulação do capital, de forte supremacia do indivíduo e do seu sucesso pessoal ataca a ideia de comunidade porque ela pode significar limitações e, principalmente, comprometer os sujeitos com os Outros. Assim, na lógica da globalização, a comunidade é o lugar do primitivo, do atraso, da pobreza, da “filosofia dos fracos”, o próprio Outro do sistema.
Ocorre que a lógica global é uma fantasia que se desfaz na realidade, deixando expostas as feridas das comunidades periféricas, e que foram produzidas pela própria globalização. Esse sistema também faz renascer nos países do centro vários grupos que se unem motivados pela ficção política do retorno das velhas identidades, cultivam uma retórica patriótica, da “grande nação”, e suas ações são xenófobas, racistas e classistas. Esse é um percurso violento movido por mentiras, ódios, medos e que, em grande medida, atende a própria globalização que passa a responsabilidade a esses grupos para expulsar e eliminar os Outros que pulam os muros, atravessam oceanos, e ameaçam o capital.
Ora, nesse mundo complexo, de uma ilusória globalização em frangalhos, do reascender de movimentos e grupos extremistas xenófobos nos centros e nas periferias, de deslocamentos forçados para sobreviver, compreendemos que a ideia de comunidade passa a ser alvo de um combate, de uma disputa, como uma experiência narrativa que transita em terreno instável, de forma que não é possível falar em “uma comunidade” como um algo dado, estável, delimitado. Não se tem a comunidade, mas se experimenta, vive-se. É aqui que transitam várias forças que tentam dar formato e rumos para a comunidade, desde os que defendem o seu controle até os que se utilizam dela como forma de resistência.
Se as percepções contemporâneas sobre a comunidade são complexas, porque a comunidade é essa experiência em trânsito bombardeada por todos os lados, esse quadro fica mais intrincado ao pensarmos em uma comunidade que envolve nove países dispersos em quatro continentes, como é o caso da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Dela fazem parte como membros efetivos as nações: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.
É possível imaginar uma comunidade nessas condições? O que faz nove países se assumirem como “comunidade”? Como a CPLP, entendida como comunidade, é percebida pelo sistema globalizado? E como é enxergada pelos próprios povos lusófonos? Para tentar responder essas e outras questões propomos conhecer um pouco o seu processo de construção.
Principalmente a partir dos anos 1950, com a maior internacionalização do capital, do fortalecimento das nações e das grandes empresas, os países desenvolvidos lançaram-se em busca de parcerias para fortalecer suas finanças. Para isso, passaram a conquistar mercados produtores e consumidores, obrigando-os a alinhamentos geopolíticos, e que resultam na criação de blocos econômicos. Na prática, Estados e empresas montaram verdadeiros consórcios multinacionais para que o capital circulasse livremente no mundo e, principalmente pudesse ter altíssimas rentabilidades aos investidores.
A busca por alianças econômicas também se realizou em países periféricos, como uma tentativa de participar, ilusoriamente, do processo de globalização dos mercados. Essas movimentações fizeram nascer organizações financeiras que atravessam e interferem, muitas vezes, sem quaisquer limites, nas economias nacionais, a exemplo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Essas ações globalizantes, essencialmente econômicas, precisavam ainda de sustentáculos políticos e culturais. Do ponto de vista político, o suporte veio com a criação de entidades para dar segurança a essas operações. Assim nasceu a União Europeia (UE); a North American Free Trade Agreement(Nafta), a União Africana (UA), o Mercado Comum do Sul (Mercosul), os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul); entre outras. Essas organizações buscam agir na lógica econômica regional/global.
Algumas entidades, mesmo atendendo aos interesses econômicos, usaram dos traços histórico-culturais, aparentemente comuns entre os países, para compor outros grupos. Esse foi o caso da Organisation Internationale de la Francophonie (OIF), que abriga nações onde a língua francesa é oficial; da Commonwealth of Nations, cuja sede é britânica e o inglês é o idioma central; e da CPLP, que reúne nações têm a língua portuguesa como oficial.
No entanto, as relações nessas entidades ultrapassam o próprio idioma. Entre elas existem laços históricos-constitutivos, especialmente os vínculos entre as antigas metrópoles e as suas ex-colônias. Por exemplo, Benin, Camarões, Costa do Marfim e outras nações em África, que foram invadidas pela França, fazem parte da OIF. Papua-Nova Guiné, Jamaica, Belize e outros países que foram explorados pelos ingleses estão na comunidade britânica. Não é diferente com a CPLP, que teve Portugal como metrópole e os demais membros como suas colônias.
Essa não é uma regra rígida. Por exemplo, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, ex-colônias portuguesas, também fazem parte da OIF, francesa. A situação é parecida com Moçambique, que é da CPLP, mas também está associada na Commonwealth, inglesa.
É importante destacar que, além de países-membros, essas “comunidades” que surgiram a partir de justificativas identitárias e elos linguísticos, também acolhem outras nações e regiões, alegando algum tipo de conexão histórica. No caso da CPLP, por exemplo, Geórgia, Japão, República Maurícia, Namíbia, Senegal, Turquia e outros foram admitidos como países “observadores associados”. Ainda na comunidade de língua portuguesa existem fortes aproximações com Macau, na China; Galiza, na Espanha; Goa, na Índia; Uruguai, na América do Sul, e outros países.
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa foi oficialmente fundada em 17 de julho de 1996, em Lisboa. No entanto, a sua construção tem um percurso que nos remete até as ações expansionistas de Portugal e de outras nações europeias no século XV. Os deslocamentos e as invasões dos portugueses na África, Ásia e América acabaram por costurar a ideia de um imaginário mundo lusófono e que teve Portugal como o centro e metrópole.
Esse “mundo luso” não vingou como mundo, mas na constituição de uma comunidade com tensões, em certa medida, inconfessadas. Por exemplo, alguns autores entendem que a ideia comunidade abrigada em uma lusofonia é uma tentativa de manutenção da lógica colonial ou neocolonial da antiga metrópole sobre as ex-colônias africanas, asiáticas e na América. Outros, acreditam que a comunidade lusófona, compreendida como uma entidade cultural festiva e centrada da língua, é um modo de apagar, ocultar, silenciar, desviar o foco das dívidas e reparações históricas para com essas ex-colônias e seus povos.
O fato é que as ações do império português na invasão e constituição de colônias ultramarinas não foram travessias de mão única, isto é, não estão isentas de consequências, muitas vezes não previstas pelos invasores. As imposições violentas da língua, da cultura e da miscigenação generalizada produziram um caldo sociocultural que transformou os “civilizados europeus” e Outros do novo mundo na Ásia, África e América.
As novas gentes que surgiram desse processo buscaram algum tipo de associação com a metrópole. Mais cedo ou mais tarde acabavam tomando o rumo de Portugal, aproveitando o mesmo caminho. Além disso, para a África iam os europeus, mas também índios, brasileiros exilados, comerciantes, traficantes. Para o Brasil, deslocavam-se europeus, africanos, asiáticos e mestiços de várias raízes, que também tomaram vários destinos. Por exemplo, em 1814 chegaram ao Brasil chineses vindos de Macau para difundir a cultura do chá. Esse projeto não teve sucesso, mas os asiáticos continuaram a imigrar e se estabeleceram no comércio.
Com essa análise, consideramos importante pensar na CPLP como a possibilidade de uma comunidade que vai se realizando também por meio de mobilidades, forçadas ou não, entre os seus povos. Esse processo não foi, e nem é pacífico, autorizado, simétrico, muito ao contrário. Salientamos que, com essas travessias identitárias – mais do que simples deslocamentos – parece ser impossível tratar da constituição dessa comunidade e das nações e dos povos da CPLP sem considerar as várias lusofonias que emergem nesse lugar, o sistema escravagista, as violentas relações identitárias e os inúmeros elementos culturais, econômicos, políticos, sociais, religiosos entre os seus povos.
Esse é um processo longo, de idas e de vindas, mas que tem um elemento que atravessa todas essas incursões: a língua portuguesa. O idioma é importante, está na literatura oficial como o “patrimônio comum” desses povos que formam a comunidade lusófona. Todavia, entendemos que a língua não guarda sozinha toda a explicação para a construção dessa comunidade. Na CPLP, o idioma é um dos elementos centrais, mas não é decisivo para a experiência comunitária. Sugerimos que existem frondosos trocos e raízes históricas e constitutivas entre nós, muito além do idioma.
No próximo texto dessa coluna, vamos problematizar a ideia de língua portuguesa, de lusofonia e da sua participação na experiência de construção da comunidade lusófona. Fica a provocação, com algum indício de resposta: a língua portuguesa o que nos faz comunidade?