A enfermagem de urgência opera num contexto altamente complexo, onde a tomada de decisão deve ser rápida, segura e eticamente fundamentada. A gestão de risco emerge como ferramenta essencial na antecipação de eventos adversos e na garantia da qualidade assistencial. Uma análise sistémica da interação entre risco, decisão clínica e práticas de enfermagem em serviços de urgência mostra como os sistemas de saúde, os fatores humanos e as ferramentas digitais influenciam a performance das equipas. A segurança não depende apenas de protocolos, mas de uma rede inteligente de relações humanas, competências clínicas, liderança, tecnologia e cultura organizacional. O serviço de urgência é um ecossistema imprevisível, onde múltiplas variáveis coexistem sob pressão: instabilidade clínica, tempo reduzido, elevada rotatividade, informação incompleta e complexidade emocional. Neste cenário, a enfermagem assume um papel de vigilância ativa, coordenação de fluxos e intervenção imediata. Cada decisão pode ser um ponto de viragem — para a vida, para a funcionalidade ou para a dignidade do utente. A gestão de risco em saúde baseia-se na identificação, avaliação e controlo de situações que podem comprometer a segurança do utente (WHO, 2023). Em enfermagem de urgência, o risco é omnipresente: desde falhas de comunicação até à administração errada de fármacos, passando por omissões na avaliação inicial. Segundo Silva et al. (2023), a tomada de decisão dos enfermeiros em urgência está fortemente condicionada por fatores sistémicos: carga de trabalho excessiva, défice de profissionais, ausência de supervisão e pressão institucional por indicadores de desempenho. Ainda assim, estudos como o de Carvalho & Pinho (2024) revelam que a liderança clínica, a cultura de segurança e a formação contínua mitigam significativamente os erros evitáveis. A literatura também aponta a necessidade de promover a tomada de decisão autónoma, baseada em raciocínio clínico, experiência e evidência. A utilização de ferramentas como o SBAR, escalas de triagem, algoritmos clínicos e tecnologias de apoio à decisão pode ser potenciadora — desde que integrada num modelo que respeite o julgamento profissional do enfermeiro (Oliveira et al., 2024).
O risco é inseparável do serviço de urgência. A variabilidade clínica, a multiplicidade de intervenções e a velocidade de execução tornam o erro uma possibilidade real. No entanto, como destaca Reason (2022), o foco não deve estar na culpabilização do profissional, mas na compreensão do sistema em que o erro ocorre. A gestão de risco, nesta perspetiva, é um processo contínuo de identificação precoce, resposta rápida e aprendizagem organizacional. Os enfermeiros, como principais sentinelas da linha da frente, estão na posição privilegiada para detetar anomalias, ativar alarmes e reconfigurar estratégias clínicas. A decisão clínica em enfermagem é um ato complexo que combina conhecimento técnico, raciocínio lógico, sensibilidade contextual e até intuição. Em urgência, onde o tempo é curto e os dados são escassos, a decisão não pode esperar pela evidência perfeita. Segundo Benner et al. (2023), enfermeiros experientes desenvolvem uma “intuição experiente” baseada em padrões acumulados, o que lhes permite atuar rapidamente com precisão. Mas esta competência precisa ser reconhecida e treinada, não desvalorizada por uma cultura de obediência protocolar. Formar para a decisão clínica é formar para a responsabilidade, a análise e a reflexão em ação, mesmo em contextos de incerteza.
A introdução de tecnologias digitais, como sistemas de apoio à decisão clínica, registos eletrónicos integrados e plataformas de triagem, tem transformado o modo como o risco é gerido em urgência. Estas ferramentas, quando bem utilizadas, reduzem a variabilidade clínica e oferecem suporte em situações complexas (Rodrigues et al., 2024). Contudo, há riscos: o uso cego de algoritmos pode atrofiar o julgamento clínico; a dependência tecnológica pode levar à desresponsabilização profissional. É necessário formar enfermeiros críticos, capazes de usar a tecnologia como aliada, e não como substituta da reflexão. A gestão de risco e a decisão clínica não se sustentam sem uma cultura organizacional que valorize o erro como oportunidade de aprendizagem. Serviços de urgência que praticam reportes sem punição, auditorias construtivas e apoio à formação têm melhor desempenho clínico e menor rotatividade de profissionais (Pereira & Almeida, 2024). A liderança de enfermagem deve ser ativa, visível e formativa, promovendo ambientes onde o raciocínio é estimulado, a partilha é encorajada e a segurança do utente é responsabilidade coletiva. Como reforça a OMS (2023), segurança é cultura, não apenas procedimento.
A enfermagem de urgência é uma arte de decisões críticas num contexto de risco permanente. Mas o risco, longe de ser um inimigo, pode ser transformado em matéria-prima para o crescimento clínico, se for gerido de forma sistémica e humanizada. Promover uma perspetiva sistémica é abandonar a ideia de que o erro reside apenas na falha individual. É compreender que o contexto, a formação, a liderança e a cultura são os verdadeiros determinantes da segurança e da qualidade. A Enfermagem, quando envolvida para decidir com rigor, coragem e humanidade, torna-se o maior ativo de qualquer sistema de saúde. E nos corredores da urgência, onde cada segundo pesa, o conhecimento em ação é a linha que separa a rotina do heroísmo silencioso.
Referências Bibliográficas
Benner, P., Tanner, C., & Chesla, C. (2023). Clinical Wisdom and Evidence-Based Practice in Critical Care. Springer.
Carvalho, A., & Pinho, M. (2024). Risco clínico e segurança em enfermagem de urgência: análise organizacional. Revista Portuguesa de Gestão em Saúde, 16(1), 44–58.
Creswell, J. W., & Plano Clark, V. L. (2022). Designing and Conducting Mixed Methods Research. SAGE.
Oliveira, R., Gomes, L., & Costa, H. (2024). Tomada de decisão em enfermagem de urgência: experiência versus protocolo. Revista de Enfermagem Avançada, 11(2), 77–90.
Pereira, D., & Almeida, S. (2024). Liderança e cultura de segurança em contextos hospitalares. Acta Médica Portuguesa, 37(1), 112–122.
Reason, J. (2022). Managing the Risks of Organizational Accidents. Ashgate.
Rodrigues, M., Silva, P., & Faria, T. (2024). Tecnologias digitais e segurança do doente em serviços de urgência. Enfermagem e Tecnologia, 9(1), 39–52.
Silva, F., Martins, A., & Dias, J. (2023). Barreiras à segurança do doente em unidades de urgência. Revista de Saúde Pública e Enfermagem, 13(1), 55–68.
WHO – World Health Organization. (2023). Global Patient Safety Action Plan 2021–2030: Towards Eliminating Avoidable Harm in Health Care. Geneva: WHO.