As democracias europeias vivem tempos de profunda tensão, alimentadas por uma combinação de choques estruturais, desigualdades persistentes e respostas estatais muitas vezes percebidas como insuficientes ou desajustadas. França e Londres (Reino Unido), apesar de seus contextos históricos, institucionais e sociais distintos, atravessam crises que, embora distintas em sua origem, convergem em sintomas semelhantes: protestos populares, polarização ideológica, desconfiança institucional e uma sensação difusa de desgoverno. Este artigo de opinião pretende examinar como as crises fiscais francesas e os conflitos sociais britânicos refletem desafios maiores das democracias liberais contemporâneas, destacando os fatores causais, os atores em conflito e as possíveis saídas para restaurar a coesão e a confiança social.
Na França, a principal ameaça à estabilidade não reside em tensões identitárias ou de migração — como é mais visível no Reino Unido —, mas sim numa pressão fiscal crescente e aparentemente incontrolável. A dívida pública ultrapassa os 114% do PIB, colocando o país numa trajetória insustentável, especialmente se consideradas as projeções que apontam para um agravamento até 119% nos próximos dois anos. Esta escalada da dívida é acompanhada por um défice orçamental que em 2024 atingiu 5,8% do PIB, muito acima do limite de 3% estabelecido pelo Pacto de Estabilidade da União Europeia. A urgência fiscal exige cortes de gastos ou aumento de receitas, ambos politicamente impopulares.
Este desequilíbrio fiscal acendeu o pavio de uma série de reformas, das quais a mais emblemática foi a reforma das pensões promovida pelo presidente Emmanuel Macron. A proposta de elevar a idade da reforma foi justificada como inevitável frente ao envelhecimento populacional e à insustentabilidade do atual sistema. Contudo, tal racionalidade técnica não impediu uma reação massiva da população. O movimento sindical organizou greves gerais, como o “Bloquons tout”, e milhares saíram às ruas para protestar não apenas contra a reforma em si, mas contra o modelo de decisão política centralizador e tecnocrático, que muitos julgam desconsiderar o impacto social real das medidas. O défice do sistema de pensões, segundo a auditoria pública francesa, tende a duplicar nas próximas décadas, o que apenas reforça a pressão por reformas estruturais, embora o espaço político para tal esteja cada vez mais limitado.
O impacto desta instabilidade francesa é duplo: por um lado, limita a capacidade do Estado de investir em áreas estratégicas como inovação, saúde e educação, o que compromete o crescimento a longo prazo; por outro, aumenta o risco de perda de credibilidade externa, seja junto das agências de rating, seja no seio da própria União Europeia. Internamente, a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas sofre um desgaste contínuo, alimentando a ascensão de partidos de oposição populistas ou radicais que capitalizam o descontentamento generalizado.
Do outro lado do Canal da Mancha, Londres enfrenta um cenário distinto, centrado menos na macroeconomia e mais nas tensões sociais ligadas à migração, à identidade e à desigualdade urbana. Nos últimos anos, os protestos contra o alojamento de requerentes de asilo em hotéis tornaram-se frequentes, com a população local frequentemente manifestando-se contra o que considera uma sobrecarga dos serviços públicos e um aumento da insegurança. Embora parte deste medo seja explorada por grupos de extrema-direita, ele também reflete uma realidade: os serviços locais — saúde, segurança, transporte — estão pressionados e nem sempre contam com o apoio necessário para responder ao aumento da procura.
O episódio mais simbólico desta radicalização social foi a marcha “Unite the Kingdom”, convocada por figuras notórias da extrema-direita como Tommy Robinson. Estima-se que entre 110.000 e 150.000 pessoas participaram do protesto, muitos envergando símbolos nacionais, exigindo políticas mais duras contra a imigração e confrontando diretamente as forças policiais. Este tipo de mobilização revela o grau de polarização atingido no Reino Unido, onde o discurso identitário ocupa o centro da arena política. Para muitos, a crise migratória tornou-se o símbolo de um sistema que falhou: falhou em planear, em proteger os mais vulneráveis e em comunicar com clareza e empatia.
O governo britânico tem tentado responder com reformas no sistema de asilo e medidas para encerrar o uso de hotéis como alojamento temporário. No entanto, a resposta estatal tem sido criticada tanto por quem considera as medidas brandas quanto por organizações de direitos humanos, que denunciam violações de direitos e estigmatização de migrantes. Entre os atores envolvidos destacam-se ONGs, redes comunitárias e grupos como o “Stand Up to Racism”, que promovem protestos em sentido contrário, exigindo uma abordagem mais humanitária e racional.
A pressão nas zonas urbanas de Londres, sobretudo nas periferias e zonas mais empobrecidas, reflete também um agravamento das desigualdades socioeconómicas. O custo de vida, impulsionado pela inflação e pela crise habitacional, aumenta a sensação de injustiça social, não apenas entre os britânicos nativos, mas também entre migrantes de segunda geração, que sentem que o sistema os marginaliza. A fragmentação social intensifica-se, dificultando consensos e abrindo espaço para discursos populistas, autoritários ou de exclusão.
Apesar das diferenças contextuais — dívida pública e reformas macroeconómicas em França, migração e crise urbana no Reino Unido —, é possível identificar pontos comuns nas duas realidades. Ambos os países sofrem de um défice de legitimidade política. Em França, isto expressa-se através da resistência a reformas percebidas como impostas de cima para baixo. Em Londres, há a crença de que o sistema beneficia elites urbanas e descuida das comunidades locais. Em ambos os casos, há protestos de massas, polarização do discurso público e fragmentação da coesão social.
Outra semelhança reside na natureza dos protestos. Em França, sindicatos, trabalhadores e movimentos sociais organizados protagonizam as mobilizações. No Reino Unido, embora a extrema-direita seja uma força visível, também há um contraponto ativo de organizações antirracistas e comunitárias. Assim, os protestos, mesmo que motivados por temas diferentes, revelam sociedades em fratura, onde a negociação democrática dá lugar ao confronto nas ruas.
A resposta dos governos tem sido limitada ou reativa. Em França, há tentativas de contenção fiscal e reformas setoriais, mas sem envolvimento efetivo dos cidadãos no processo decisório. No Reino Unido, a ênfase tem sido securitária e centrada em medidas de contenção imediata, com pouco debate estrutural sobre as causas das tensões. Ambas as abordagens fracassam em responder à crise de confiança nas instituições.
O caminho possível para superar estas crises passa por reformas com legitimidade social. No caso francês, isto implica uma política fiscal mais transparente, com participação ativa de sindicatos e associações civis, que possa equilibrar sustentabilidade orçamental e justiça social. O sistema de pensões, por exemplo, precisa ser revisto com base em projeções demográficas reais, mas também levando em conta os impactos redistributivos e as trajetórias laborais diferenciadas dos trabalhadores.
Já no Reino Unido, é urgente uma abordagem mais equilibrada da política migratória. Processos de asilo mais céleres, políticas de integração social, investimentos em habitação pública e em serviços locais podem atenuar os efeitos reais da migração, enquanto combatem a narrativa alarmista. É essencial promover um debate público que não normalize o discurso de ódio, mas que também não ignore os desafios reais enfrentados pelas comunidades locais.
França e Reino Unido são, neste momento, espelhos de tensões que atravessam toda a Europa: entre contenção e inclusão, entre estabilidade e justiça, entre identidade nacional e pluralismo. A solução não reside em fórmulas tecnocráticas nem em slogans populistas, mas na reconstrução de um pacto social que articule eficiência, equidade e participação democrática. Sem isto, a instabilidade atual pode tornar-se crónica — e o preço será pago por toda a sociedade.
Referências Bibliográficas
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