Já que o final do ano se apresentou como um momento propício para reflexões, é extremamente oportuna uma análise do novo cenário do mundo do trabalho em construção no Brasil. Quase inadvertidamente, estão se efetivando profundas alterações na legislação brasileira que, põem em xeque, a importância do trabalho na vida do indivíduo contemporâneo e o seu fundamental papel para a sobrevivência dos trabalhadores e da própria sociedade.
Após uma atuação polêmica e instável do Poder Executivo ao longo do ano, com muitos mandos e desmandos, 2019 finda para os brasileiros em meio a discursos desconexos do Presidente da República, Jair Bolsonaro, que, em tudo e a todos, mostra sua incoerência cognitiva e a sua falta de inteligência emocional. Distraídos por novidades quase diárias de desatinos, propositais ou não, o brasileiro aparenta não perceber o resultado perverso do primeiro ano do novo governo que, comandado principalmente pelo Superministro da Economia, Paulo Guedes, atacou, de forma sistemática, as conquistas alcançadas pelos trabalhadores nos últimos 80 anos.
Mais do que a modernização das relações trabalhistas, o crescimento da economia ou a necessidade de gerar novos postos de trabalho – justificativas frequentemente utilizadas pelo governo –, o que se configurou no Brasil foi uma série de proposições enviadas pelo Poder Executivo com o objetivo de desregulamentar todos os direitos trabalhistas. Uma verdadeira busca sistemática por condições de trabalho pré-CLT[i].
Aparentemente desatento – e diante da imagem de um país construído pela grande mídia, a partir de números seletivos ou intencionalmente alterados -, o trabalhador brasileiro finda o ano entusiasmado com a característica bonança do mês de dezembro, principalmente pelos consumos advindos do 13º salário e da liberação antecipada do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS. Fundo, aliás, criado, exclusivamente, para o trabalhador sobreviver, este e a sua família, em situação de desemprego[ii].
Por sua vez, no cenário legislativo, a pauta do Congresso Nacional esteve, convenientemente, aliada com a do Poder Executivo em diversas de suas propostas de desassistência ao trabalhador. Grande parte dos parlamentares dedicaram-se, quase exclusivamente, à rápida tramitação de projetos precarizadores do trabalho e de sucateamento do benefício previdenciário.
Vejamos, na sequência, oito proposições enviadas pelo Governo Bolsonaro, que, dentre outras tantas, alteram profundamente a vida do trabalhador. Destas, três já foram aprovadas pelo Congresso Nacional, sendo, que as demais, ainda estão tramitando.
A primeira a ser citada é a Proposta de Emenda Constitucional nº 06/2019[iii], denominada de Reforma da Previdência. Foi protocolada em fevereiro de 2019 e aprovada, com ampla maioria, em ambas as Casas. Na Câmara dos Deputados, em agosto, após cinco meses de discussão, e no Senado Federal, açodadamente, em outubro de 2019.
Apesar de ter sido alardeado amplamente pelo Governo Federal que as alterações previdenciárias trariam aos cofres públicos a economia de 1 trilhão de reais ao longo de 10 anos, os dados que embasaram a reforma se revelaram, metodologicamente, hipotéticos. Nas audiências públicas, realizadas nas duas Casas, ficou evidente a inexistência ou a fragilidade dos bancos de dados citados, além de um ministro da economia colérico e belicoso ante as argumentações dos parlamentares. Mesmo assim, com a aprovação da opinião pública, a Emenda Constitucional nº 103/2019 foi promulgada em 12 de novembro e comemorada, ruidosamente, pelos Presidentes da República, Jair Bolsonaro, da Câmara, Deputado Rodrigo Maia, e do Senado, Senador Davi Alcolumbre.
Além desta, duas outras proposições já sancionadas mostram a conivência do Legislativo com o Executivo nas mudanças previdenciárias: o Projeto de Lei nº 2999[iv], de 2019, hoje Lei nº 13.876, de 2019, e a Medida Provisória nº 871, de 2019, hoje Lei nº13.846/19[v]. As matérias apresentadas pelo Poder Executivo possibilitaram a revisão sistemática, mesmo que injustificadas, da aposentadoria dos inativos por invalidez, suspendendo, inclusive, inúmeros benefícios. Além disso, estabeleceu uma série de obstáculos à aposentadoria do trabalhador rural, questionando a credibilidade da declaração individual e dos sindicatos, além de outras mudanças.
Neste processo de desmonte, não se pode deixar de mencionar os três Projetos de Emendas Constitucionais, as PEC’s n.º 186[vi], 187[vii] e 188[viii], todas de 2019, denominadas Plano Mais Brasil. Divulgadas pelo Presidente Bolsonaro como propostas do governo, quando protocoladas, a autoria não foi do Executivo, e sim, de diversos senadores da base governamental. Sem dúvida, a intencionalidade foi driblar a norma constitucional que estabelece a Câmara dos Deputados como a Casa iniciadora de propostas legislativas, e é onde, atualmente, o governo encontra mais resistência[ix] e menos celeridade. Com esta manobra, o Senado tornou-se a Casa iniciadora e é quem determina o texto final.
As citadas PEC’s, trazem inúmeras alterações arbitrárias na relação do Estado com a sociedade, desmobilizando recursos sociais, desestruturando o serviço público e prejudicando o atendimento ao cidadão em diversas áreas. Atinge também, de forma profunda, a categoria de servidores públicos, proibindo a estes aumentos pecuniários e diminuindo, compulsoriamente, a jornada e o salário.
Já valendo – mas ainda em processo de análise e podendo ser validada ou não – temos o nosso sétimo exemplo: a Medida Provisória nº 905, de 11 de novembro de 2019[x]. Por meio dela, o Executivo instituiu o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo e, para isto, alterou dezenas de artigos da CLT, estabelecendo uma nova modalidade de contratação de jovens, agora, sem importantes direitos garantidos até então. Para compensar as isenções de tributos concedidas aos empregadores, a MP passa a tributar, pasmem, os desempregados brasileiros.
Para finalizar, o Executivo enviou à Câmara, em regime de urgência, o perverso Projeto de Lei nº 6.159/2019[xi], que ataca mais uma vez os aposentados e que ameaça tirar das pessoas com deficiência, dois direitos há muito conquistados no Brasil: a garantia de cotas[xii] nas empresas e o Benefício de Pagamento Continuado – BPC[xiii]. No caso do BPC, se aprovado, haverá a previsão de convocação de todos os beneficiários do programa, com deficiências moderadas a graves, para requererem, obrigatoriamente, a suspensão do pagamento do BPC e se habilitarem – ou reabilitarem – para o mercado de trabalho, em qualquer função possível.
No âmbito infra legal, o Executivo tem também se empenhado em desconstruir o arcabouço de proteção ao trabalhador. Vilanizadas desde sempre pelos maus empregadores, as Normas Regulamentadoras do Trabalho, NR’s, estão em revisão, com o claro objetivo de relativizar ou extinguir, o mais rápido possível, as medidas protetivas vigentes de segurança e saúde do trabalhador.
Mas não foi todo mundo que perdeu este ano no Brasil. Muito pode ser comemorado pelos banqueiros e demais beneficiários do sistema financeiro. Os lucros continuam enormes. Grandes setores produtivos também brindam isenções e renegociações vantajosas de dívidas, distribuídas, generosamente, ao longo de 2019. Enquanto as próximas viúvas do segmento mais pobre da população, perderam quase metade de suas pensões, na mesma proposição, é aprovada uma modificação no texto, devolvendo ao setor rural um benefício tributário que retira R$ 83,9 bilhões da economia esperada com a reforma. Feliz ano novo!
[i] A Consolidação das Leis do Trabalho, cuja sigla é CLT, surgiu pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943, com o objetivo de regulamentar as relações trabalhistas e equilibrar as forças desiguais entre capital x trabalho, tendo sido diversas vezes atualizada ao longo do tempo.
[ii] O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS foi criado pela Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, e vigente a partir de 01 de janeiro de 1967, para proteger o trabalhador demitido sem justa causa.
[iii] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192459
[iv] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2204056
[v] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13846.htm
[vi] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139702
[vii] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139703
[viii] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139704
[ix] Conforme https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/11/05/senado-recebe-novo-pacote-de-reformas-do-governo.
[x]https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/139448
[xi] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2230632
[xii]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm
[xiii] Regulamenta o benefício de prestação continuada da assistência social devido à pessoa com deficiência e ao idoso de que trata a Lei nº 8742, de 7 de dezembro de 1993, e a Lei nº 10741, de 1º de outubro de 2003, acresce parágrafo ao art. 162 do Decreto nº. 3048, de 6 de maio de 1999, e dá outras providências.



