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Estado de felicidade: o combate às desigualdades sociais e os processos de inclusão no território

Estado de felicidade: o combate às desigualdades sociais e os processos de inclusão no território

O equívoco de que sociedades mais ricas tornam-se mais felizes originou o próprio fracasso do modelo de desenvolvimento económico dessas sociedades. De acordo com Bauman (2017), tal é devido ao facto dos graus de satisfação e felicidade das pessoas não estabelecerem uma correlação direta entre o crescimento económico e o respetivo aumento dos estados de felicidade.

As desigualdades e o equívoco da felicidade*
(*artigo adaptado para A Pátria, a partir de “Lugares de encontro” para Revista Saber Madeira – janeiro 2020)

Ironicamente a história demonstra que associado à alegada melhoria das condições de vida nessas sociedades está o aumento das desigualdades sociais, originando por conseguinte o declínio dessas sociedades (Bauman, 2017). A acumulação de riqueza, ao invés de potenciar a felicidade e universalizar as estruturas de conforto, antes tem vindo a contribuir para o acentuar das desigualdades e agravar os fenómenos de violência. A história da desigualdade é por isso, razão, causa e origem da história da violência (Scheidel, 2017) e do perpetuar das hegemonias vigentes.

A nível mundial, a desigualdade de rendimentos absoluta atingiu novos máximos: no período 1988-2008 os rendimentos do 1% mais rico aumentaram cerca de quarenta vezes mais per capita (Scheidel, 2017). Neste período, o mundo viu extremar, do ponto de vista ideológico, um paradigma de desenvolvimento neoliberal iniciado no pós-guerra, que veio a revelar-se esgotado. Até ao seu declínio com a crise financeira e económica de 2008, este modelo não regulado, assente na especulação financeira e imobiliária, foi responsável pelo esvaziamento do Estado social e pela recusa do “keynesianismo”. O colapso das dívidas soberanas veio agravar as desigualdades entre aqueles que mais detinham e aqueles que pouco (ou nada) tinham. A consecutiva privatização do setor público e a recusa do intervencionismo do Estado na economia contribuíram e acentuou o progressivo aniquilamento do Estado social, deixando-o exposto ao desinvestimento público como estratégia para redução dos déficits orçamentais.

A falta de solidariedade das potências económicas ocidentais (do centro e norte europeu) em relação às periferias, determinou e acentuou a progressiva decadência do projeto político europeu. A fragmentação política associada ao fracasso das políticas neoliberais, levadas ao extremo, além de acentuar as desigualdades entre estados veio demonstrar o progressivo esvaziamento das funções sociais dos estados, nomeadamente na suborçamentação dos sistemas de Saúde e Segurança Social (Goes, 2020).

É falacioso o argumento da inevitabilidade histórica da pobreza, quando na realidade todos somos responsáveis pelas transformações sociais, políticas e económicas que acontecem no seio da nossa sociedade. Esta sociedade global, em vésperas da ascensão de novos totalitarismos, continua a impingir intencionais equívocos – a inevitabilidade da pobreza e que a felicidade resulta da acumulação de riqueza – para justificar o insucesso de um modelo de desenvolvimento que agrava as desigualdades sociais, acentua a exclusão e a violência e entroniza aqueles que do mérito (e da ética) não dependem para obterem sucessos. Esta nossa sociedade pós-histórica (e pós-ideológica) escolheu olhar os indivíduos como números, em vez de olhar a humanidade das pessoas – providas de uma mesma substância da Criação – determinando o seu processo civilizacional.

O processo civilizacional (1939) de que fala Norbert Elias (2006) consubstancia-se na eliminação da agressividade e da violência como processo de desenvolvimento humano e social (Bauman & Leoncini, 2018). Os processos de não identificação cultural com o lugar habitado ou com a sociedade onde se inserem constituem um mecanismo de exclusão social, acentuando uma distrofia e um intencional equívoco entre uma alegada superioridade intelectual e moral. A pobreza, do ponto de vista económico, estaria alegadamente relacionada com uma “pobreza cultural”, justificada na imoralidade dos comportamentos e hábitos sociais dos mais pobres (Cadela, 2007; Débord, 1997).

O processo (des) civilizacional (Elias, 2006) demonstra que as práticas de identificação cultural e social, outrora associadas a grupos excluídos de uma sociedade com uma identidade cultural maioritária e hegemónica, hoje assume a estratégia de “ostentar uma estética da pobreza”, para legitimar o modus vivendi neoliberal hiperconsumista. A legitimação da violência volta hoje a acontecer como entretenimento de uma sociedade voyerista.

Combater os persistentes baixos níveis de escolaridade, junto das classes mais desfavorecidas, junto das comunidades de imigrantes e das minorias étnicas nos países ocidentais – os mais pobres das suas sociedades – (Scheidel, 2017) poderá desempenhar um importante papel na inclusão social e na identificação coletiva, como contribuir para a dotação de novas competências que combatam o desemprego, a pobreza e a violência. Eliminar a violência passa, necessariamente, pela capacidade da sociedade, enquanto coletivo, redistribuir a riqueza e construir uma nova herança cultural comum, que não submeta a alteridade à hegemonia do dominador sob o dominado.

O Papa Francisco, numa recente homilia pronunciando-se “contra a hipocrisia” de alguns líderes políticos, denuncia que “a solução para os pobres” não passará por “políticas assistencialistas”, comparando os discursos populistas de hoje aos discursos totalitários do século XX (Goes & Freitas, 2020). Inequivocamente, a superação da violência, enquanto estratégia de desenvolvimento, deverá apontar um caminho para a paz, estabelecendo o diálogo multilateral entre potências económicas, “o perdão da dívida dos países mais pobres, o levantamento das sanções económicas e um cessar-fogo global”.

Na sua mais recente Encíclica “Fratelli Tutti” o Papa constata que, infelizmente, “os direitos humanos não são iguais para todos”. De acordo com Francisco (2020) O respeito destes direitos “é condição preliminar para o próprio progresso económico e social de um país (…) em favor do bem comum”. Parafraseando o Papa, reaparece a “cultura dos muros”, no coração e na terra, impedindo o encontro com as outras pessoas. “O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia”, refere Francisco (2020).

Os processos de inclusão no território*
(*a partir de artigo em co-autoria com Lúcia Costa, “O bem é o caminho, o lugar de encontro é a praça”, publicado no Jornal Económico a 24 de novembro de 2020)

De acordo com Goes & Freitas (2020), “a descaracterização da paisagem não só influi na degradação da qualidade de vida das pessoas que habitam um território, como também acentua a desestruturação dos modelos de desenvolvimento económicos assentes no turismo e na especulação imobiliária”.

As cidades contemporâneas, determinadas por uma economia do turismo, assistem, quase passivamente, à expansão urbana como resposta às necessidades de um modelo de desenvolvimento económico neoliberal, esgotado. Por outro lado, não reconhecem o direito à habitação, dos mais pobres e excluídos da sociedade: os cidadãos sem-abrigo, os imigrantes, os refugiados, as vítimas de violência, os desempregados, entre tantos outras outras pessoas que há anos esperam por uma habitação condigna e com igual direito à dignidade da pessoa humana.

(Goes & Freitas, 2020)

De acordo com Goes & Freitas (2020), “o reconhecimento do direito à habitação encontrámo-lo, enquanto pressuposto da realização da pessoa humana, desde logo na Declaração Universal dos Direitos Humanos – instrumento jurídico universal de proteção dos direitos humanos – que reconhece a todo o ser humano um conjunto de direitos essenciais à sua realização plena e existência e constituindo-se como forma inspiradora de uma nova cultura e como fator de desenvolvimento humano e social. Aquilo que nos distingue dos outros seres, fazendo de cada um de nós pessoas, é a dimensão do Ser”.

O respeito pela dignidade da pessoa humana, consubstancia-se também nos processos de inclusão e identificação com o território habitado, pelo livre acesso à habitação e a respetiva qualidade do edificado que permite o conforto dos seus habitantes. Por isso, é um direito de todos os seres humanos que habitam um mesmo orbe – cidadãos de uma sociedade (hiper) globalizada – poderem usufruir de um lugar a que se sintam pertencentes. De acordo com os mesmos autores, refere-se que o direito universal à habitação é fulcral para que no espaço físico ocupado, “possam constituir como lar, e aí viver com segurança, com privacidade e sem riscos para a sua saúde”. Todavia, ao analisarmos a envolvente que rodeia as cidades contemporâneas, ou os seus centros históricos, o que se encontra “é que nem todos os seres humanos partilham desta dimensão”. Um edificado condigno está também relacionado com o abastecimento de água potável e acesso ao saneamento básico.

“Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”

(Artigo 65º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa).

“Os estados-partes, no presente Pacto, reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestuário e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida”.

(Pacto Internacional de Direitos Económicos Sociais e Culturais (PIDESC). Artigo 11, 1º)

É tempo, de cada um de nós, com a sua voz e intransigência, não esmorecer na sua ação de defesa dos direitos humanos e promover uma “cultura de encontro” para que não hajam mais muros (Goes & Freitas, 2020) e para que as praças sejam verdadeiros lugares de encontro.

Referências:
Bauman, Z. (2017). A Arte da Vida. Lisboa: Relógio d’Água Editores
Bauman, Z. Leoncini, T. (2018). Nados líquidos – Transformações do Terceiro Millennium. Lisboa: Relógio d’Água Editores
Cadela, I. (2007). Sombras de ciudad. Arte y transformacíon urbana en Nueva York, 1970-1990. Madrid: Alianza
Débord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.
Diário da República n.º 173/2004, Série I-A de 2004-07-24, (2004). Artigo 10.º da Lei Constitucional n.º 1/2004. Assembleia da República. Disponível em: https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/337/202011231109/128029/element/diploma
Elias, N. (2006). O Processo Civilizacional. Lisboa: Dom Quixote
Francisco, (2020). Carta Encíclica Fratelli Tutti. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana
Goes, D. (2020, setembro 20) Se non è vero, è ben trovato. Lisboa: Jornal Económico. Disponível em: https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/se-non-e-vero-e-ben-trovato-639062
Goes, D. & Freitas, L. (2020, novembro 24). O bem é o caminho, o lugar de encontro é a praça. Lisboa: Jornal Económico. Disponível em: https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/o-bem-e-o-caminho-o-lugar-de-encontro-e-a-praca-667768
Organização das Nações Unidas, (1976). Pacto Internacional de Direitos Económicos Sociais e Culturais. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/ProfessionalInterest/cescr_SP.pdf

Scheidel, W. (2017). A violência e a história da desigualdade – Da idade da pedra ao século XXI. Lisboa: Edições 70

Imagens D.R. editadas “Caprichos” de Goya (c. 1799) / Museu do Prado / WikiArt.org (domínio público)

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