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Entre os Países Baixos e a Madeira: reflexões sobre a geografia da Inovação

Entre os Países Baixos e a Madeira: reflexões sobre a geografia da Inovação

Quando pela primeira vez cheguei aos Países Baixos para estudar no mestrado, apercebi-me imediatamente de uma diferença que não se limitava ao idioma, ao clima ou aos costumes. A diferença estava sobretudo nas funções desempenhadas profissionalmente pelos meus colegas de curso, exatamente com a mesma formação, licenciatura que eu. Muitos, ao terminarem os seus cursos, eram integrados diretamente em departamentos de I&D — Inovação e Desenvolvimento, onde se dedicavam à concepção de novos produtos e à criação de soluções. No regresso à Madeira, apercebi-me de que os profissionais com formações semelhantes à minha, em vez de seguirem para a área de I&D, eram absorvidos por departamentos operacionais, muitas vezes ligados à qualidade, ao controlo de processos ou até a funções administrativas. Não é um acaso, mas sim um reflexo de um sistema económico e cultural que no Norte da Europa privilegia a inovação como motor de competitividade e no Sul continua a ver a investigação como um “desperdício” financeiro.

Esta constatação pessoal corresponde ao que diversos estudos e estatísticas confirmam. A intensidade do investimento em I&D, medida pela percentagem do PIB destinada a esta área, é significativamente maior no Norte da Europa do que no Sul. Em 2023, a União Europeia investiu cerca de 381 mil milhões de euros em I&D, o que correspondeu a 2,22% do PIB (European Commission, 2024). Mas a média europeia esconde realidades muito diferentes: países como a Alemanha ou os Países Baixos superam consistentemente os 3%, enquanto Portugal se situa muitas vezes abaixo de 1,5%. De facto, na sequência da crise financeira, a intensidade de I&D portuguesa caiu para perto de 1,3% do PIB em meados da década passada e só recentemente tem recuperado (OECD, 2019).

Outro dado relevante é a distribuição de investigadores e técnicos de I&D pelas regiões europeias. Em 2021, apenas 68 regiões NUTS 2 da União Europeia tinham uma proporção de pessoal em I&D igual ou superior à média da UE (European Commission, 2022). Entre essas regiões destacam-se as do Norte da Europa, em particular os pólos tecnológicos dos Países Baixos, da Alemanha e dos países escandinavos. No Sul, muitas regiões continuam abaixo da média, o que significa menos pessoas dedicadas à investigação e, consequentemente, menos projectos de inovação estruturados. No caso específico da Madeira, esta realidade é ainda mais acentuada: a insularidade e a escala do mercado dificultam a instalação de empresas com departamentos de inovação, e o talento local acaba muitas vezes subaproveitado, forçando muitos a emigrar ou a aceitar funções menos alinhadas com a sua formação académica.

No Norte, é comum encontrar empresas, mesmo de porte médio, que mantêm laboratórios e equipas próprias de I&D. A proximidade a ecossistemas de inovação, como parques tecnológicos e “clusters” industriais, facilita a troca de conhecimento e a partilha de recursos. Nos Países Baixos, a região de Eindhoven é conhecida como um verdadeiro polo tecnológico europeu, com forte concentração de empresas de tecnologia de ponta e parcerias entre indústria e universidades (VTT Research, 2021). Essa densidade gera efeitos multiplicadores, porque as empresas competem, mas também colaboram, criando um ambiente fértil para que os recém-formados sejam absorvidos como investigadores e não apenas como técnicos de execução. O mesmo acontece na Alemanha, onde os institutos Fraunhofer formam uma rede poderosa que liga ciência, empresas e aplicação prática em dezenas de sectores (Fraunhofer-Gesellschaft, 2023).

Em Portugal, ainda que existam bons exemplos, como centros de investigação ligados a universidades e laboratórios associados como o INESC TEC no Porto, a realidade é mais fragmentada (INESC TEC, 2023). Muitas empresas não têm escala para manter departamentos internos de I&D e acabam por externalizar a investigação para universidades ou centros especializados. Outras, simplesmente, não a realizam de forma consistente, limitando-se a melhorar processos já existentes ou a adoptar inovações desenvolvidas noutros contextos. Isto cria um hiato estrutural: enquanto no Norte os profissionais são contratados para criar algo novo, no Sul são, em grande parte, chamados a garantir que o que já existe funciona bem. A diferença é subtil mas poderosa: em vez de contribuir para a invenção do futuro, muitos acabam a assegurar a repetição do presente.

As consequências deste desequilíbrio são várias. A primeira é a chamada “deformação de percursos profissionais”: jovens altamente qualificados, com mestrados e doutoramentos, regressam aos seus países ou regiões de origem e não encontram espaço para aplicar os conhecimentos em I&D. São integrados em áreas como a qualidade, a manutenção ou o controlo, que embora essenciais, não aproveitam a totalidade do seu potencial criativo e científico. A segunda consequência é a mobilidade forçada: muitos acabam por emigrar para o Norte da Europa, onde as oportunidades são mais abundantes e mais adequadas ao perfil de investigador. Esta mobilidade, que poderia ser temporária e enriquecedora, torna-se muitas vezes definitiva, porque os que partem dificilmente regressam a contextos em que a inovação não é valorizada da mesma forma. A terceira consequência é a própria estagnação dos ecossistemas locais: quanto menos massa crítica de investigadores fica no país ou na região, menos empresas se sentem incentivadas a investir em inovação, alimentando um ciclo vicioso de baixo risco, baixo investimento e baixa atractividade.

Na Madeira, esta situação é ainda mais sensível. A insularidade limita o mercado, dificulta a criação de “clusters” tecnológicos e afasta investidores estrangeiros que procuram ecossistemas mais densos. Quem deseja inovar enfrenta barreiras adicionais: menor proximidade a centros de investigação de escala, dificuldades de acesso a redes colaborativas e custos logísticos acrescidos. Ainda assim, a região tem potencial para criar nichos de inovação em diversas áreas. Para isso, porém, é necessário reforçar a articulação entre instituições governamentais, universidades e sector privado, criando incentivos claros e duradouros que fixem talento e atraiam projectos de I&D.

Ao contrastar estas duas realidades — a do Norte europeu, onde a inovação é o coração da economia, e a do Sul, onde muitas vezes é apenas uma nota de rodapé — percebemos que a diferença não reside apenas nos números, mas também na mentalidade. No Norte, há uma cultura enraizada de aceitação do risco associado à inovação. Errar faz parte do processo e falhar um protótipo é apenas mais um passo em direcção a um produto melhor. No Sul, pelo contrário, a margem para falhar é vista como desperdício, e as empresas tendem a optar por soluções seguras e já testadas, mesmo que isso limite o potencial de crescimento e diferenciação. Esta diferença cultural condiciona não só a estratégia das empresas, mas também o destino das carreiras de milhares de jovens formados em áreas técnicas e científicas.

O futuro, no entanto, não precisa de repetir este padrão. Portugal tem vindo a recuperar o investimento em I&D, e existem sinais de que uma nova geração de empresas começa a valorizar a inovação de forma mais consistente (OECD, 2019). A Madeira, com a sua autonomia e singularidade, tem a oportunidade de apostar em sectores específicos e de criar políticas regionais que reforcem a presença de departamentos de I&D, mesmo em pequenas e médias empresas. Ao fazê-lo, pode transformar o destino de muitos jovens formados, evitando que a sua energia criativa se disperse ou que seja canalizada apenas para tarefas operacionais. O desafio é grande, mas a recompensa é ainda maior: ao integrar a inovação como parte do ADN empresarial, estaremos não só a reter talento, mas a criar as bases para uma economia mais robusta, resiliente e competitiva.

A minha experiência pessoal, que começou com o espanto de ver colegas nos Países Baixos a trabalhar directamente em inovação enquanto os meus conterrâneos assumiam funções de qualidade, não é apenas uma história individual. É o reflexo de um contraste estrutural entre duas Europas: a que investe no futuro e a que, por vezes, se contenta em gerir o presente. Mas essa diferença pode ser superada. Para isso, é preciso que no Sul da Europa, em Portugal e na Madeira, se encare a inovação não como um acessório, mas como o motor central do desenvolvimento. Só assim conseguiremos transformar a formação dos nossos jovens em verdadeiro capital de futuro e criar as condições para que a criatividade e o conhecimento floresçam onde fazem mais falta: na nossa própria casa.

Referências

European Commission. (2022). Research and development statistics at regional level. Eurostat. https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Research_and_development_statistics_at_regional_level

European Commission. (2024). R&D expenditure. Eurostat. https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=R%26D_expenditure

Fraunhofer-Gesellschaft. (2023). Annual report 2023. https://www.fraunhofer.de/en/about-fraunhofer/annual-report.html

INESC TEC. (2023). Relatório de actividades 2022/2023. Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência. https://www.inesctec.pt

OECD. (2019). OECD review of higher education, research and innovation: Portugal. OECD Publishing. https://doi.org/10.1787/9789264308138-en

VTT Research. (2021). OECD TIP case studies on R&D intensity: Synthesis report. https://www.vttresearch.com/sites/default/files/2021-05/OECD-TIP-RD-intensity-case-studies-synthesis-report.pdf

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