Um texto de Inaê Silva e Adriana Giubertti


Há leituras que nos silenciam e, ao mesmo tempo, nos pedem que lhes demos voz. Assim é Atos humanos, livro da galhardeada escritora sul-coreana Hang Kang, vencedora do prêmio Nobel de Literatura de 2024. Nessa obra dilacerante, a autora resgata o terrível massacre ocorrido em Gwangju, sua cidade natal, no ano de 1980, no qual centenas de trabalhadores e estudantes universitários e escolares foram recebidos de peito aberto a tiros de metralhadora e fuzil e a golpes de baionetas pelo exército nacional a mando do então presidente, general Chun Doo-hwan. A Aegukga (hino nacional) e a Taeguk (bandeira nacional) se tornaram os símbolos do massacre, pois as vítimas, desarmadas, foram atacadas enquanto marchavam enroladas na bandeira, ao som do hino de seu país.
A leitura de Atos humanos é pesada. Como um museu impresso da dor — exposta em chagas abertas, sem tabus ou floreios —, esse livronostoca fundo. Possui o sutil equilíbrio entre a delicadeza que só os grandes escritores alcançam e a crueza de um brutal escalpelo. Virada a última página, restam o vazio — um nada preenchido por uma mistura indefinida de dor, revolta, humilhação; o silêncio — solene homenagem aos que morreram de cabeça erguida por todos nós, não importa se em Gwangju ou em qualquer outro lugar ou momento histórico; o incômodo dilema interior entre a exaltação e a vergonha pelo que somos: inteiramente humanos, para o bem e para o mal.
Com o título Atos Humanos, Hang Kang adjetiva o humano em sua mais densa contradição. Ao fazer o mundo recordar que logo ali, quase no fechar das cortinas do século XX, no país que é hoje uma das mais imponentes locomotivas de desenvolvimento do Leste Asiático, a Coreia do Sul, o horror mais abjeto se deu a olhos nus, sem o menor dos pudores, ela nos conduz à percepção de que o bom e o mau, a vítima e o algoz são dois lados de uma mesma moeda: o homem.
Para isso, não dispensa descrições indigestas: o estado dos incontáveis corpos alinhados em caixões que lotam todo um ginásio ou empilhados secretamente em montanhas incineradas, sem que jamais pudessem ser ao menos identificados e devidamente sepultados por seus familiares; a imagem de meninos e meninas escolares carregando, limpando, colocando em caixões, ordenando minimamente velórios coletivos de corpos violentamente mutilados em estado de putrefação; a dor incurável da jovem universitária barbaramente violentada pela penetração diária e repetitiva, por incontáveis semanas, de uma régua de madeira ou de um cano de metralhadora em sua intimidade; as lancinantes palavras pronunciadas pelo espírito de um dos garotos ao ver seu corpo sem vida trespassado por tiros de fuzil: ” Queria crescer mais. Queria fazer flexão quarenta vezes seguidas. Queria abraçar uma mulher algum dia” ou a dúvida sem resposta: “Por que me matou? Por que matou minha irmã?”. Não teriam igualmente um espírito — não seriam também humanos, afinal — os jovens soldados que ceifaram a vida daqueles tantos jovens sonhadores plenos de desejos humanitários?
Por mais impactante que seja, Atos humanos não é o retrato de um caso isolado de brutalidade entre os homens. Quisera! O que não falta na história mundial são semelhantes — e até maiores e piores — exemplos de crueldade. Exatamente agora, no Oriente Médio, há um massacre em curso contra o povo palestino, vítima de um projeto explícito de extermínio assumido pelo atual governo de Israel, que, além de promover imensurável matança de civis em Gaza, mantendo mulheres, idosos e crianças em regime de confinamento, humilhação e fome, lança-se, também, em poderosas incursões militares contra Irã, Líbano e Síria, em uma guerra cujo destino final ainda está por ser traçado.
Em meados do século XX, pouco mais de duas décadas passadas do final da Primeira Guerra Mundial, quando o Ocidente julgava caminhar a passos firmes rumo a um mundo baseado na ordem, na democracia e na civilidade, espoucam o fascismo, o nazismo e um novo conflito militar de proporções intercontinentais. Nesse contexto, a pretexto da consecução da utopia distópica nazista, criam-se os campos de concentração e, posteriormente, de extermínio de humanos indesejados: ciganos, negros, homossexuais, pessoas deficientes, prisioneiros políticos e de guerra, artistas, acadêmicos e, sobretudo, judeus. O historiador britânico Laurance Rees[1] realiza densa incursão investigativa sobre esses campos, que entende serem alguns dos lugares mais “desumanos” já construídos pelos “humanos”.
Em que pese a crueldade abjeta e inominável do morticínio indiscriminado e amplamente massificado de inocentes pelo projeto nazista nas câmaras de gás, na ponta da bala, de fome, frio ou doença, a desumanidade desses hediondos campos é, como aponta Rees, ainda mais densa e obscura do que se possa imaginar. Ela atinge e modifica o próprio caráter dos subjugados, reforçando a fluidez ética do humano em condições específicas, conforme retratado na literatura de Hang Kang.
É Toivi Blatt, um judeu sobrevivente de Sobibór[2], quem chega a essa conclusão em entrevista a Rees. À época com apenas 15 anos, Blatt trabalhou como “ajudante” na administração do campo de extermínio polonês, em tarefas penosas como o deslocamento para as câmaras de gás das incontáveis levas humanas chegadas diariamente pela linha do trem — incluindo amigos e familiares —, a retirada dos corpos após o envenenamento e seu posterior abandono em imensas valas coletivas. A crueza sórdida da realidade vivida pelo então jovem judeu fê-lo concluir que, naquelas condições, todos poderiam ser bons e maus. Há muito fora do campo, sempre que vê um ato de bondade, Blatt se pergunta: como seria essa pessoa em Sobibór?
Outro judeu com quem Rees conversou, Kalman Taigman, membro de um comando dedicado à limpeza dos alojamentos onde as mulheres tinham o cabelo raspado antes de entrarem nas câmaras de gás, relata que, por vezes, encontrava bebês escondidos sob as pilhas de roupas, camuflados por mães desesperadas por salvá-los dos nazistas. Cumprindo ordens, ele apenas os entregava aos alemães para serem mortos a tiros, jogados nas valas ou, se já houvesse corpos sendo incinerados, atirados vivos diretamente ao fogo. Como eu me sentia? replica Kalman? Não sentia nada, virei um autômato, sem pensamentos. Só queria não ser o próximo.
A leitura de Atos Humanos, assim como a própria obra de Ress,tem o condão iconoclasta de implodir mitos. A escritora sul-coreana nos leva a ver que o humano ético que adjetiva quem somos não é sinônimo nem de virtude — solidariedade, bondade, caridade, compaixão ou civilidade — nem de vício — egoísmo, ódio, covardia, crueldade. O humano que nos adjetiva é apenas o que somos: uma complexa, dinâmica e frágil teia de virtudes e vícios, que se moldam, acomodam-se e alternam-se no tempo, no espaço e nas condições interiores e exteriores que se apresentam a cada um. Nem Rousseau nem Hobbes, o humano para Hang Kang é um gramado infinito onde o bem e o mal, vizinhos de muro, tomam juntos o mesmo chá da tarde.
[1] REES, L. (2018). O Holocausto: uma nova história. 1 ed. São Paulo: Vestígio.
[2] Campo de extermínio nazista situado na Polônia. A esse respeito, vide: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/sobibor-abridged-article, consultado em 15 de junho de 2025.