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Entre a voz e a pluma (I): Serva de Deus Maria da Encarnação (1613-1653)

Entre a voz e a pluma (I): Serva de Deus Maria da Encarnação (1613-1653)

Serva de Deus Maria da Encarnação (1613-1653)

A história do arquipélago da Madeira tem sido escrita invariavelmente do ponto de vista das elites e classes possidentes, particularmente focalizada em torno de figuras masculinas. O papel das mulheres insulares permaneceu em segundo plano, ainda que existam iniciativas esparsas para reabilitá-las do esquecimento. A partir do texto “Entre a voz e a pluma: textos madeirenses de autoria feminina (do século XV à 1.ª metade do século XX)” (Macedo 2021), procuraremos dar a conhecer cada autora por artigo, dentro de um estilo auto-etnográfico e documental.

Serendipidade

Em 2012, durante a minha peregrinação por entre arquivos e bibliotecas à procura de matérias madeirenses para a composição de um dicionário de escritoras, deparei-me com um volumoso códice na Biblioteca da Ajuda (Lisboa) intitulado Vida da serva de Deus, Maria da Encarnação, nascida no Funchal em 1613 recolhida no Mosteiro da Encarnação do Funchal, da autoria do jesuíta Pe. João Ribeiro, S. I. (1636-1705). À primeira vista, tratava-se de uma biografia em torno de uma personalidade que não tinha sido considerada por alguns estudiosos do Convento de Nossa Senhora da Encarnação do Funchal, designadamente por Gomes (1995) e Fontoura (2000). Havia duas questões que se me impunham: quem era o Pe. João Ribeiro, S. I. e quem era a recolhida conhecida como serva de Deus Maria da Encarnação? Começaremos pelo autor do códice e depois em torno da biografada.

De acordo com De Backer, Carayon e Sommervogel  (1960), o Pe. João Ribeiro, S. I. (1626?-1705), era um religioso da Companhia de Jesus natural de Tavira. Depois de ter feito o noviciado em Évora, o religioso esteve em Luanda, no recém-fundado Colégio de São Paulo (1636), onde lecionou letras e teologia moral ao longo de alguns anos. Conta-se que ao passar pelo arquipélago da Madeira, o Pe. João Ribeiro, S. I., terá sido feito refém dos piratas ou corsários argelinos ou turcos, possivelmente, por volta de 1641 (Vieira 2020). Depois de libertado, exerceu o ministério apostólico no Colégio de São João Evangelista do Funchal e no Colégio de São Paulo de Luanda, onde foi reitor. Foi, também, confessor das religiosas dos conventos femininos funchalenses. Faleceu em Évora, a 2 de fevereiro de 1705. Apesar de as datas apresentadas por De Backer, Carayon e Sommervogel (1960) relativamente ao percurso biográfico deste jesuíta não serem consistentes, os autores não identificam o códice da Biblioteca da Ajuda, referindo apenas, baseando-se em Barbosa Machado (1741, 2:734–35), um relato biográfico, Vida da V. Anna de S. Tiago da Ordem Terceira de S. Francisco, religiosa natural de Braga. Somente Henrique Henriques de Noronha (1996) cita uma passagem das cartas de Maria da Encarnação nas suas Memórias Seculares e Eclesiásticas, o que poderá significar que o códice possivelmente esteve na custódia do cartório ou livraria do Colégio de São João Evangelista do Funchal, antes da supressão da ordem e confisco dos seus bens em 1759. Por mais de duzentos anos, o códice da Vida da serva de Deus, Maria da Encarnação permaneceu desconhecido, segundo parece, da comunidade científica.

Vida de uma mística mulata 

Nascida no Funchal a 29 de junho de 1613, Maria Pereira era filha de João Pereira de Sousa, mercador natural do Porto, e de Ana Vieira, natural de Porto Santo. Maria Pereira teve, desde muito nova, uma particular inclinação para a vida religiosa. Foi educada por D. Maria de Salamanca, esposa de Mendo de Brito de Oliveira, e pelo cónego Henrique Calaça de Viveiros, fundador do Recolhimento de Santa Teresa, depois Convento de Nossa Senhora da Encarnação.

Depois de lhe ter sido recusada a admissão para o Convento de Santa Clara do Funchal, por ser de baixa condição social e por motivos raciais, a influência dos padres da Companhia de Jesus do Funchal foi decisiva para o seu ingresso no então Recolhimento de Santa Teresa, na condição de leiga. Assim, Maria Pereira adotou o nome de religião de Maria da Encarnação. A elite social madeirense, contudo, não teve boa opinião para as primeiras religiosas admitidas nessa instituição. Como testemunhado pelo próprio Pe. João Ribeiro, S. I., o cenóbio foi considerado como um recolhimento de mulatas, referindo-se, em particular, à polémica admissão da recolhida Maria da Encarnação devido à sua condição de “mulher baça”, referindo-se à exigência da “pureza do sangue” dos religiosos católicos.

Impossibilitada de tornar-se numa religiosa clarissa, Maria da Encarnação professou a Ordem Terceira do Carmo e impôs sobre si mesma exigentes penitências. Acusada de supostas blasfémias contra a fé, o Pe. João Ribeiro, S. I., (1636-1705), seu confessor, escreveu uma “vida” sobre esta religiosa madeirense, com o propósito de documentar o percurso espiritual desta religiosa. Nesta “vida”, género literário de tipo biográfico aplicado somente quando uma religiosa se encontra acusada de heresia, o Pe. João Ribeiro, S. I., reuniu mais de cento e cinquenta cartas, entre os confessores, incluindo o próprio e o Pe. Diogo Prata, S. I., e a religiosa, todas autenticadas pelo Pe. João Roiz de Sá e pelo escrivão D. Sancho de Herédia, para que não houvesse dúvidas sobre a fidedignidade do epistolário. 

Existem poucos casos de religiosas madeirenses que foram escritoras entre os séculos XV e XVIII, designadamente sóror Isabel da Madre de Deus (séc. XVI?) e sóror Isabel Francisca de São José (1679-1717), cujas obras se perderam (Macedo 2019). O códice da autoria do Pe. João Ribeiro, S. I., redigido na qualidade de confessor da religiosa madeirense, abre uma janela única para o ambiente espiritual do monaquismo feminino madeirense vivenciado no então Recolhimento de Santa Teresa. 

O teor das cartas da Serva de Deus, assim como é designada pelo seu confessor, trata não só das suas experiências místicas, mas também da interpretação das leituras realizadas em torno dos autores espanhóis, como Santa Teresa de Ávila (1515-1582), Frei Luís de Granada (1505-1588) e S. João da Cruz (1542-1591). É evidente que o cónego Henrique Calaça de Viveiros estava a preparar a sua protegida para tornar-se numa religiosa carmelitana, providenciando-lhe todos os meios possíveis. Como a valiosa biblioteca do Colégio de São João Evangelista do Funchal não facultava empréstimos de livros à comunidade exterior e o acesso ao mercado livreiro era muito difícil nessa época, Maria da Encarnação ou comprava os seus próprios livros ou pedia ao cónego Henrique Calaça de Viveiros ou aos religiosos da Companhia de Jesus para que realizassem cópias dos textos, porque tinham “uma boa letra”, como ela dizia. Numa das suas cartas de 1653 referia com regozijo:

Veiome  neste  ultimo de  Lisboa  hum  liurinho  do  P[adr]e  Frei Joaõ  da  Crus,  descobrio  lá  com  m[ui]ta deligencia em caminhada por hum frade carmelita huma terceira que lá está que estaua em casa de D. Maria Salamanca a senhora   que   me   criou   custou   dous cruzados  he  da  mesma  impressam  do que cá temos que nos deu D. Margaida que tem a Irmam Luzia, faziame mingoa ueyo  quando  Deus  quis.

(Portugal, Biblioteca da Ajuda, Vida da Serva de Deus Maria da Encarnação… f. 512).

O que torna extraordinário este códice consiste no facto de uma mulher insular de condição social inferior ter pretendido tornar-se numa religiosa, ousando ler e escrever, enquanto as elites insulares a condenavam, porque se abria uma exceção perigosa para outras mulheres “de cor” que estavam na condição de escravas ou de libertas. 

À intolerância sucedeu-se a solidão, como a própria escreveu numa das suas cartas datadas de 14 de março de 1653, “não tenho que contar mais que solidão e eso quero e me parece mui bem aquella canção que dis – En soledad vivia y en soledad ha puesto ya su nido” (f. 512-516). Maria da Encarnação faleceu no Funchal, depois de julho de 1653. Nos Tombos da Fundação do Convento de Nossa Senhora da Encarnação (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, liv. 8), Maria da Encarnação praticamente não é mencionada.

Referências

Backer, Augustin de, Aloys de Backer, Carlos Sommervogel, e Auguste Carayon. 1960. Bibliothèque de la Compagnie de Jésus. Vol. 6. Louvain: Editions de la Bibliothèque S.J., Collège philosophique et théologique. http://archive.org/details/bibliothquedelac06back.

Barbosa Machado, Diôgo. 1741. Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica. Na qual se comprehende a noticia dos authores portuguezes, e das obras, que compuseraõ desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até o tempo prezente. Vol. 2. Lisboa: Na officina de Ignacio Rodrigues. http://archive.org/details/bibliothecalusit02barbuoft.

Fontoura, Otília Rodrigues. 2000. As Clarissas na Madeira: uma presença de 500 anos. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico, Secretaria Regional do Turismo e Cultura.

Gomes, Maria Eduarda Sousa. 1995. O Convento da Encarnação do Funchal, subsídios para a sua história: 1660-1777. Funchal: SRTC, CEHA.

Macedo, L. S. Ascensão de. 2019. Dicionário (incompleto) de escritoras madeirenses e de textos de autoria feminina. Funchal. https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/89420.

———. 2021. «Entre a voz e a pluma: textos madeirenses de autoria feminina (do século XV à 1.a metade do século XX)». A Pátria: Jornal da Comunidade Científica da Língua Portuguesa, Fevereiro. https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/93160.

Noronha, Henrique Henriques de. 1996. Memórias seculares e eclesiásticas para a composição da história da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira. Editado por Alberto Vieira. Vol. 14. Memórias. Funchal: Centro de Estudos de História do Atlântico,.

Vieira, Alberto. 2020. «corso». Aprender Madeira. 9 de Dezembro de 2020. http://aprenderamadeira.net/article/corso.

Imagem: Combe, W. (1821), «A» History of Madeira: with a series of twenty-seven coloured engravings, illustrative of the costumes, manners, and occupations of the inhabitants of the Island, published by R. Ackermann, London, disponível em: https://purl.pt/23411.

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