Formar é moldar: a ética da exigência no tempo dos atalhos digitais


Costuma-se dizer que “as pessoas fazem o que é inspecionado, não o que se espera delas”. A frase, atribuída ao ex-CEO da Intel, Andy Grove, causa certo desconforto quando transposta para o universo da educação. Afinal, neste campo, cultivamos a esperança de que a confiança e o afeto despertem, por si sós, o comprometimento do outro. Esperamos muito. Exigimos pouco. E quando o resultado não corresponde, nos frustramos — não apenas pela falha no desempenho, mas por sentir que houve uma quebra na relação, uma ausência no processo.
Na educação, a proximidade entre professor e aluno é, sem dúvida, essencial. É esse vínculo que humaniza a aprendizagem, que permite que o conhecimento passe pela emoção, pelo reconhecimento mútuo. No entanto, essa relação precisa de reciprocidade. Se a empatia do educador não for acompanhada por responsabilidade do estudante, corre-se o risco de a proximidade ser confundida com permissividade. Quando isso ocorre, aquilo que deveria impulsionar o esforço transforma-se, paradoxalmente, em desculpa para o mínimo.
A crise da autoria e o vazio da presença
Recentemente, ao convidar meus alunos a apresentarem oralmente os próprios trabalhos escritos, vivi uma experiência reveladora. Os textos estavam bem estruturados: citações apropriadas, linguagem formal, bibliografia em ordem. Mas, ao fazer perguntas simples sobre as ideias centrais, muitos hesitavam. Não se lembravam do que haviam escrito. Como se aquele conteúdo nunca tivesse passado por dentro deles. Como se o texto tivesse sido produzido para entregar, não para aprender.
Essa experiência, infelizmente, não é isolada. Ela aponta para um fenômeno mais amplo: a erosão do compromisso com a autoria. Quando um estudante apresenta um trabalho que não domina, ele não apenas falha academicamente; ele abdica da própria jornada de formação. O que está em jogo ali não é apenas uma nota — é a construção de uma identidade intelectual. É o desenvolvimento de uma consciência crítica, que só pode nascer do encontro entre o esforço pessoal e a reflexão profunda.
A tecnologia como espelho
É tentador culpar a tecnologia por esse esvaziamento da autoria. De fato, ferramentas como a inteligência artificial têm ampliado enormemente a capacidade de produzir textos sem que haja, necessariamente, envolvimento intelectual. Mas a tecnologia, por si, não é inimiga da educação. Ela é apenas um espelho — que reflete, de maneira impiedosa, quando houve terceirização do esforço, quando o amadurecimento foi substituído por um atalho.
Utilizar inteligência artificial para produzir textos sem reflexão é como vestir uma roupa que não se experimentou. Pode até servir, mas não pertence. É uma presença falsa. E na educação, a presença é tudo. É ela que dá sentido ao processo. É ela que transforma um conteúdo externo em aprendizado interno.
Exigir é cuidar
Nesse contexto, é fundamental resgatar o valor da exigência como ato pedagógico. Exigir não é punir. É afirmar: eu acredito que você pode mais. É dizer ao outro que seu potencial merece ser desafiado. Que a zona de conforto não educa. Que a complacência, embora reconfortante, não forma ninguém.
Peter Drucker, ícone da gestão moderna, afirmava: “o que não pode ser medido, não pode ser gerido”. Essa lógica, nascida no mundo corporativo, ressoa com força no campo da educação: se não acompanharmos de perto o processo de aprendizagem, corremos o risco de perder a essência daquilo que queremos formar. É preciso, sim, medir, acompanhar, confirmar. Não para controlar, mas para construir junto. Para sinalizar presença. Para dizer: eu estou aqui, e espero que você também esteja.
Formar é moldar com exigência e verdade
O filósofo Immanuel Kant, em Sobre a Pedagogia (1803), afirma que “o homem não é nada além daquilo que a educação faz dele”. Esta afirmação potente nos lembra que formar é, inevitavelmente, moldar. Não no sentido de controlar, mas de dar forma. E dar forma exige cuidado, presença, verdade — e também rigor.
O conhecimento não nasce da liberdade irrestrita, tampouco da vigilância opressiva. Ele floresce num espaço tenso, mas fértil, entre autonomia e exigência. Entre confiar e confirmar. Entre esperar e acompanhar. É nesse espaço que se desenvolvem o senso crítico, a ética e a autoria — pilares de qualquer processo educativo verdadeiro.
Presença não é acessibilidade: é compromisso
Ser um professor presente não é apenas ser acessível, gentil ou compreensivo. É ser comprometido com a formação do outro. E esse compromisso implica, muitas vezes, em cobrar. Em dizer não. Em apontar falhas. Em recusar o atalho fácil. Porque confiar em alguém é também não aceitar pouco de quem pode dar mais.
É por isso que, mais do que nunca, precisamos reafirmar a centralidade da presença exigente na educação. Uma presença que acolhe, mas também desafia. Que escuta, mas também cobra. Que apoia, mas também aponta. Porque educar não é apenas informar. É formar. E formar é, antes de tudo, não desistir do outro — mesmo quando ele tenta desistir de si mesmo.