Parece ser unanime o entendimento de que o financiamento público educacional é essencial para a sobrevivência da Educação Pública brasileira. Mas onde exatamente este financiamento pode representar ponto básico para uma aprendizagem de qualidade ou apenas uma forma de controle social, poucos se debruçam a identificar. Sabe-se que o repasse adequado das verbas públicas é importante para a manutenção das instalações físicas, para o pagamento dos salários, para aquisição de merenda ou para a compra de suprimentos escolares, todos requisitos importantes para a qualidade educacional, mas não se estabelece com frequência uma relação direta entre o uso dessas verbas e o processo de aprendizagem em sala de aula.
Este artigo pretende provocar uma reflexão crítica sobre o aparecimento no Brasil nos últimos nove anos da chamada parceria público-privada na Educação Pública, especificamente na Educação Básica. Neste modelo de parceria, o concessionário fica responsável pela gestão e operação das estruturas, oferecendo apenas serviços não-pedagógicos: alimentação; vigilância e portaria; limpeza; jardinagem e controle de pragas; manutenção e prevenção; apoio escolar; tecnologia da informação; serviços de gestão de utilidades; e serviços administrativos. Toda a área pedagógica continua a cargo da equipe de profissionais da área educacional.
A Constituição Federal (CF) de 1988 define que é dever do Estado brasileiro garantir a Educação e estabelece que isso deve ser feito em regime de colaboração: Estados, Municípios, Distrito Federal e o Governo Federal. Para isso, prevê um financiamento específico, com a vinculação de recursos públicos. Segundo o parágrafo 212 da Constituição Federal a União deve aplicar nunca menos de 18% e os Estados e Distrito Federal e os Municípios nunca menos que 25% da receita resultante dos impostos e transferências constitucionais. Além disso, há o acréscimo da contribuição social do salário-educação recolhido pelas empresas.
Todo esse montante financeiro é destinado à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), conforme o disposto no artigo 212 da CF, regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). As atividades suplementares, tais como merenda, uniformes e dinheiro direto na escola, são financiados com outros recursos administrados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com recursos provenientes, dentre outras fontes, do salário-educação, recolhido pela União, que repassa uma parte para Estados e Municípios.
Tomando como base os dados do Censo Escolar da Educação Básica 2023[1], todo esse sistema de financiamento educacional garante educação pública para 47,3 milhões de alunos, matriculados em 178,5 mil escolas espalhadas por todo o Brasil. No mesmo ano, segundo divulgado pelo Ministério da Educação, foram investidos na Educação Básica R$ 9,6 bilhões, 99,5% de execução orçamentária[2]. Dinheiro público em benefício da Escola Pública.
Diante desse cenário financeiro robusto e da garantia legal de gratuidade e qualidade educacional para todos os brasileiros e brasileiras em idade escolar, é preciso refletir sobre a chegada da parceria público-privada na educação pública brasileira, considerando não somente as questões de repasses financeiros, mas também as pedagógicas e curriculares.
O Público atraindo investimento Privado
Este texto não pretende afirmar ou negar a parceria público-privada na educação pública brasileira, apenas levanta alguns pontos ainda obscuros e provoca uma reflexão crítica sobre talvez um dos momentos da história recente mais tensos para o financiamento da educação pública nesse país, marcado por uma discussão de ordem econômica de desvincular os recursos constitucionais para a educação, com a afirmação de que tal vinculação de recursos comprometeria o novo arcabouço fiscal do país (regime fiscal sustentável), combinado com o surgimento da parceria público-privada para a área educacional. Sobre a questão da desvinculação de recursos financeiros, a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA) publicou em seu site oficial um manifesto afirmando que “desvincular os recursos mínimos para a educação e saúde da Constituição é condenar o futuro das crianças e jovens brasileiros/as em benefício dos ricos e poderosos[3]”.
Como até os economistas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) sabem, a educação não compromete nenhum ajuste fiscal. Ela representa investimento na formação das gerações futuras e tem impacto na formação das crianças e na qualificação de jovens e adultos que têm acesso à escola. Portanto, gera retornos quantificáveis em termos de crescimento econômico, melhoria de renda e de outras condições da existência. Por consequência, maior receita de tributos, contribuindo, dessa forma, para o equilíbrio das contas públicas. (FINEDUCA, 2024)
Sobre o tema da parceria público-privada na educação, a Revista Brasileira de Educação (RBE) publicou um artigo em 2023 (Rev. Bras. Educ. 28 • 2023) analisando a situação educacional do município brasileiro de Manaus — Amazonas — intitulado “Sistema de parceria público-privada na educação: estratégias mercantilistas para o ensino público de Manaus”, afirmando que “a inserção das organizações privadas hegemônicas na educação pública municipal de Manaus tem levado à internalização e naturalização de que tudo que envolve a educação pública pode e deve ser convertido em bens e produtos comercializáveis”[4].
No Estado brasileiro do Paraná, em junho deste ano, foi aprovado um projeto de lei que passa à iniciativa privada a gestão administrativa e de infraestrutura de 204 colégios estaduais a partir do ano de 2025[5]. Apesar das inúmeras manifestações contrárias de Professores, Alunos e Gestores, o projeto de lei foi aprovado. No Estado de São Paulo, o Governador aprovou em 23/06/2024, a modelagem final para a publicação dos editais para a construção de 33 novas escolas no modelo de parceria público-privada. O projeto terá seus editais publicados nos próximos meses, com a aprovação do Conselho Diretor do Programa de Desestatização (CDPED)[6].
No ano de 2015, a rede municipal de educação básica de Belo Horizonte — Minas Gerais — implantou as primeiras escolas no sistema de parceria público-privada, de lá para cá, muitos municípios brasileiros aderiram ao modelo, mas não há mensuração dos impactos desta política pública no Brasil, devido ao seu recente processo de introdução e articulação. No caso de Belo Horizonte, foram registrados resultados positivos apenas em relação à infraestrutura e manutenção das escolas, fato que acende um sinal de alerta, para que mais pesquisas relacionadas ao impacto deste modelo de educação na qualidade educacional pública e na alocação dos recursos públicos sejam realizadas.
A escola que forma cérebros
Abordaremos nesse momento dois pontos fundamentais no processo de parceria público-privada: o financiamento educacional público e as questões curriculares.
No campo do financiamento é preciso deixar claro que hoje, nos locais onde a parceria público-privada ainda não é uma realidade, as verbas públicas destinadas para as escolas públicas, chegam através de programas orçamentários específicos e se dividem em centralizadas e descentralizadas. Por recurso financeiro centralizado, entende-se o executado pela administração direta, pelo próprio governo do Estado; por recurso financeiro descentralizado, o de execução pela Unidade Escolar. As verbas são destinadas a todos os níveis da Educação Básica, na forma prevista no Artigo 70 da LDB 9394/96. Os Estados devem atuar prioritariamente nos ensinos Fundamental e Médio; o Distrito Federal no âmbito da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio e os Municípios, na Educação Infantil e Ensino Fundamental.
Com a parceria público-privada todo esse esquema orçamentário sofre mudança, pois há um repasse ao setor privado de parte do orçamento, para que as questões que não envolvam as ações pedagógicas sejam atendidas. Ocorre aqui a primeira dúvida: como dar conta de toda a demanda administrativa escolar que hoje acontece no limite financeiro e ainda dar lucro para e empresa privada? Talvez ajustes devam ser feitos. Mas então surge outra dúvida: como ajustes financeiros serão realizados sem prejuízo para as ações pedagógicas diárias da escola?
Tais dúvidas surgem por haver dois tipos de lideranças no interior da escola, uma que tem sua atenção integral para o pedagógico e outra apartada do processo pedagógico voltada para a otimização de recursos financeiros. A lógica empresarial conseguirá conviver harmonicamente com a lógica pedagógica?
É sabido que Educação demanda tempo, espaço, criatividade e desafios diversos. No caso da escola pública brasileira, essas demandas são trabalhadas dentro do princípio legal da gestão democrática, expresso na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96)[7] e tem garantido avanços importantes no uso adequado da verba pública, os diversos conselhos de pais e de toda a comunidade escolar atuam democraticamente nas decisões financeiras das escolas públicas. Como fica o princípio da gestão democrática em uma parceria público-privada? Os conselhos escolares não serão mais ouvidos na decisão sobre o gasto da verba pública dentro da escola pública?
No aspecto curricular, entendendo aqui currículo como um instrumento de poder econômico, social e político composto pelo material didático, docentes, discentes, gestores, comunidade escolar e quem, o que, e como se ensina, tomaremos como conceito central a definição de currículo pautada por Apple (2006, p. 103)[8], definindo-o como mecanismo de controle social, não sendo neutro e nem aleatório, pois representa os interesses de um determinado grupo. É preciso entender esses interesses sociais para então compreender a seleção de seus conteúdos. O autor relaciona esses interesses com as estruturas econômicas e políticas que contribuem com a desigualdade social.
No Brasil, a Educação Pública tem sua base curricular organizada por um documento legal intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais, que tem como objetivo estabelecer parâmetros nacionais para a construção local de currículos adequados a realidade de cada região.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram elaborados procurando, de um lado, respeitar diversidades regionais, culturais, políticas existentes no país e, de outro, considerar a necessidade de construir referências nacionais comuns ao processo educativo em todas as regiões brasileiras. Com isso, pretende-se criar condições, nas escolas, que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e reconhecidos como necessários ao exercício da cidadania. ((PCN -Brasília: MEC/SEF, 1998)
Há uma discussão mundial sobre qual currículo cada Unidade Escolar deve adotar. No Brasil, tendo como base os PCNs, há muita discussão e posturas diversas, alguns teóricos afirmam que o ideal é um currículo que atenda as particularidades de cada comunidade escolar, outros já defendem que o importante é um currículo único para um Município, Estado ou País, porém todos reconhecem que é o currículo trabalhado no interior da escola que forma o sujeito social, cidadão e humano. Está posto um território de disputa pelo poder, onde o que está em jogo é que tipo de sujeito se deseja formar e para qual sociedade.
Algumas localidades brasileiras, principalmente Municípios, por motivos diversos, contratam empresas educacionais que oferecem currículos padronizados, compostos por treinamentos aos Professores e material didático docente e discente. Nesse caso, a discussão sobre qual sujeito se quer formar é terceirizada, transferindo para a lógica empresarial essa função. Caso estes mesmos locais optem pela parceria público-privada estaríamos então privatizando a Educação como um todo? E os sujeitos, seriam então privatizados?
Acende-se aqui um precedente perigoso, abrindo caminho para uma futura privatização do ensino público, onde os docentes e discentes correriam o risco de se transformarem em meros cumpridores de deveres ditados pela lógica empresarial, onde o mais importante seria o lucro finaceiro. Aquele sujeito, munido de cérebro, mente e corpo, presente em um currículo voltado para uma aprendizagem reflexiva, poderia se tornar talvez um tarefeiro a serviço de um crescimento econômico liberal.
Percebam que são muitos os pontos obscuros diante da adoção ou não da parceria público-privada na Educação Pública brasileira, havendo apenas um de clara iluminação: é no interior da escola que formamos os cérebros humanos que, investidos em corpos ambulantes pelo mundo, constituirão a sociedade. Resta saber qual sociedade estamos prestes a constituir!
[1] Disponível em: https://futura.frm.org.br/conteudo/educacao-basica/noticia/censo-escolar-2023-como-esta-educacao-basica-do-brasil — Acesso em 18/06/2024.
[2] Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2023/dezembro/mec-investe-mais-de-r-9-bi-em-educacao-basica-em-2023 — Acesso em 18/06/2024.
[3] Disponível em: https://fineduca.org.br/desvincular-os-recursos-minimos-para-a-educacao-e-saude-da-constituicao-e-condenar-o-futuro-das-criancas-e-jovens-brasileiros-as-em-beneficio-dos-ricos-e-poderosos/ — Acesso em 19/06/2024.
[4] Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/kPG63W6mVbbpZH9htpdyMWQ/ — Acesso em 19/06/2024.
[5] Saiba mais em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2024/05/28/entenda-o-projeto-que-pode-entregar-a-iniciativa-privada-a-gestao-de-colegios-do-parana-e-veja-200-instituicoes-elegiveis-para-receber-o-modelo.ghtml — Acesso em 19/06/2024.
[6] Saiba mais em: https://www.educacao.sp.gov.br/projeto-de-parceria-publico-privada-preve-construcao-de-33-novas-escolas/ — Acesso em 19/06/2024.
[7] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm — Acesso em 22/06/2024.
[8] APPLE, M. W. Ideologia e currículo. Porto Alegre: Artmed, 2006.