Sérgio Magalhães*
Patrícia Anjos Azevedo**
Com o surgimento da pandemia causada pela doença de Covid-19, sentimos nas nossas vidas diversas e acentuadas mudanças que exigiram (e continuam a exigir) de todos uma enorme capacidade de adaptação. São exemplos paradigmáticos destas muitas mudanças o recurso ao teletrabalho ou ao ensino à distância e o crescimento exponencial das compras online, bem como o recurso às videochamadas, neste último caso, como forma privilegiada de encurtar o distanciamento que nos foi imposto pela referida pandemia.
Neste seguimento, é a uma das mais relevantes conquistas de abril que dedicámos esta coluna: a educação.
Como é sobejamente conhecido, o ano que agora findou (e, muito provavelmente, este que agora começa) foi um ano atípico para a educação em todo o mundo e Portugal não foi exceção! A pandemia generalizada, provocada pela doença de Covid-19, veio acelerar de forma muito significativa a transformação social a que vínhamos assistindo, fruto da globalização e da inteligência artificial.
Quando passamos por um dos momentos mais críticos, quer ao nível de casos de infeção, quer ao nível do número de mortes provocadas pela Covid-19, em Portugal, iniciámos uma nova suspensão das atividades letivas presenciais que, muito provavelmente, desaguará num novo período de ensino exclusiva ou predominantemente à distância (depois de parte muito significativa do ano letivo transato já ter decorrido com recurso ao ensino à distância). Nesta fase, escusado será referir que são diversos os estudos que apontam para os efeitos nefastos causados pela pandemia na aprendizagem, impacto este, que, será, na nossa perspetiva, tanto maior, quanto menor for a idade dos alunos. É, por isso, chegado o momento de começarmos a refletir sobre as vantagens e desvantagens do ensino à distância e a igualdade ou desigualdade no seu acesso.
Se recorrermos a um breve teste de memória, rapidamente somos capazes de identificar diversas vantagens no ensino à distância, como sejam: a inexistência de deslocações (dos docentes e dos alunos), o que possibilita uma economia de tempo e de custos; e, no caso dos alunos, mais tempo para estudar; uma flexibilização do local de estudo/trabalho; e, finalmente, a possibilidade de se poder aumentar o número de alunos que têm aula em simultâneo.
Muitas outras vantagens poderiam ser por nós aqui enumeradas, mas não é esse o objetivo desta coluna, mas sim o de perceber que esta nova forma de ensinar à distância, praticada nos últimos tempos de forma generalizada, pode pôr em causa os direitos fundamentais e constitucionais à educação e ao ensino.
A nossa lei fundamental, a Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) dedica diversas e importantes normas ao ensino e à educação. Desde logo, consagra no art. 43.º (Parte I – Título II) a liberdade de aprender e de ensinar. Trata-se de um direito, liberdade e garantia, numa dimensão essencialmente negativa, de defesa perante o Estado.
Todavia, a liberdade de aprender também tem uma dimensão positiva, da qual decorre o direito a todos os cidadãos de exigir do Estado a criação de uma rede de escolas gratuita, acessível em condições de igualdade. Por isso mesmo, no quadro dos direitos económicos, sociais e culturais (mais concretamente, no capítulo III do título III da parte I, relativo aos direitos e deveres culturais), a CRP dedica os arts. 73.º a 77.º à educação e ao ensino.
O n.º 1 do artigo 73.º da CRP consagra que todos têm direito à educação, devendo o Estado promover a “democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva” (cfr. n.º 2 do mesmo preceito).
Nesta mesma linha de pensamento, o art. 74.º da CRP garante, no seu n.º 1, a todos o direito ao ensino e à igualdade de oportunidades de acesso e de êxito escolar, o que se traduz num conjunto de tarefas (consagradas no n.º 2 do mesmo preceito) que são incumbência do Estado, de modo a assegurar a dimensão de serviço público.
Nesta linha, a CRP privilegia o ensino público, a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino e a participação democrática de alunos e professores no ensino (cfr. arts. 75.º a 77.º da CRP).
Ora, o ensino à distância veio acentuar as dificuldades de comunicação entre docentes e alunos e veio, entre outras coisas, provocar uma perda de contacto e de partilha de experiências, bem como dificultar o ensino de conteúdos práticos. Mas, mais importante do que isso, veio por a nu a enorme desigualdade entre as famílias portuguesas, impedindo muitos alunos de terem acesso às aulas por não possuírem meios tecnológicos que os suportem. Falamos, pois, da inexistência de meios tecnológicos e/ou de ligação à internet, sem os quais, esta modalidade de ensino não é possível.
Reconhecemos que o ensino à distância é uma solução que permite evitar a inexistência de aulas. Todavia, reiteramos que tornar o ensino online a regra seria tornar o ensino extremamente injusto.
Vejamos, o ensino presencial, garante que as aulas são “mais iguais” para todos os alunos que as frequentam, seja porque as condições de conforto são iguais, porque a temperatura é igual ou porque a tranquilidade do ambiente é igual. Se enviarmos os alunos para casa, conseguimos assegurar esta “igualdade”?
Parece-nos evidente que não. Desde logo, porque nem todos os alunos têm um ambiente tranquilo em casa onde possam assistir às aulas ou estudar; nem todos os alunos têm casas bem acomodadas ou minimamente quentes onde possam estar confortáveis (não nos podemos esquecer que uma parte significativa da população portuguesa está em pobreza energética); alguns não têm sequer uma divisão da casa onde possam estar sossegados e concentrados; e, como já tivemos oportunidade de referenciar, ainda existem aqueles que não têm bons equipamentos eletrónicos (ou simplesmente não os têm) ou um bom sinal de Internet (ou não têm mesmo acesso) que corresponda às necessidades que, no caso do ensino online, são básicas. Daqui, rapidamente concluímos, que aqueles que não sentem estas dificuldades terão melhor aproveitamento do que aqueles que as sentem.
Urge encontrar soluções para mitigar e combater as barreiras erguidas e o fosso digital criado com ensino à distância na educação, uma vez que estas colocam em causa os princípios fundamentais de acesso ao ensino em condições democráticas. Nenhum estudante deve ter o seu ensino em causa por não ter condições económicas, familiares e outras que não permitam um bom ensino à distância.
Terminamos, com o alerta para a necessidade de recuperar laços desfeitos, quebrar as barreiras erguidas e a solidão provocada pelo ensino à distância. Hoje, mais do que nunca, é preciso Humanizar. E, finalmente, mas não menos importante, é preciso que a todos seja assegurado o direito ao ensino e à educação (pilar do regime democrático), educação essa gratuita, acessível e em condições de igualdade para todos, tal qual está previsto na Constituição da República Portuguesa, pois só assim garantimos a formação integral do indivíduo.
Foto D.R. Cortesia Renato de Castro / UOL
*Licenciado em Solicitadoria pela Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave; Mestre em Solicitadoria pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto.
** Licenciada, Mestre e Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto; Advogada, atualmente com inscrição voluntariamente suspensa; Juiz-árbitro CAAD em matéria administrativa e em matéria tributária; Prof.ª Adjunta Convidada na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto.