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Escola Cívico-Militar no Brasil: como chegamos a esse ponto?

Escola Cívico-Militar no Brasil: como chegamos a esse ponto?

No dia 07 de março de 2024, o governador do Estado de São Paulo, Sr. Tarcísio de Freitas, enviou à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), o projeto de lei que criava o Programa Escola Cívico-Militar[1] e em 21 de maio de 2024, com confronto e muita gritaria de estudantes que não concordavam com o teor do documento e queriam uma discussão mais ampla, o projeto de lei complementar 09/2024 foi aprovado, com 54 votos favoráveis e 21 contrários à medida. Na ocasião, estudantes foram impedidos de entrar em espaços da Alesp por policiais militares munidos de cacetetes, escudos e gás de pimenta, utilizados diretamente durante um longo tempo contra jovens que tentavam insistentemente entrar e acompanhar a sessão plenária.

A lei complementar 09/2024 prevê a implementação logo de início, de 100 (cem) escolas no modelo Cívico-Militar, sob a gestão compartilhada da Secretaria Estadual de Educação e da Secretaria de Segurança Pública. Ainda segundo o documento, para indicação das escolas serão considerados como critérios básicos os índices de rendimento escolar inferiores à média estadual, as altas taxas de vulnerabilidade social e o fluxo escolar, fundamentados pelos índices de aprovação, reprovação e abandono escolar. Além da indicação governamental, haverá uma consulta pública local para viabilizar ou não a implementação do projeto na Unidade Escolar indicada.

Essa ideia no Brasil não é nova, no ano de 2019, o então Presidente da República já havia anunciado um projeto similar para toda a nação brasileira. Em 25 de setembro do mesmo ano, escrevi um texto publicado no jornal Folha de São Paulo[2], republicado por outras mídias[3], sobre o assunto, enfatizando a discrepância brutal entre o desenvolvimento cerebral das crianças e adolescentes na fase escolar e as regras de convivência e obediência praticadas pela cultura militar. No ano de 2023, no mandato do atual Presidente da República, o projeto de escolas cívico militares em nível nacional foi revogado.

Vários pontos importantes previstos na lei complementar 09/2024 ainda não foram bem detalhados, como as fontes de financiamento do projeto, o conteúdo das atividades extracurriculares de natureza cívico-militar que serão ministradas pelos Militares e como será garantida a segurança e a disciplina dentro das unidades escolares nos moldes militares, em harmonia com os princípios pedagógicos, cognitivos e sociais que envolvem uma convivência escolar saudável. Ainda sobre o financiamento, é importante salientar que segundo a Constituição Federal, a Educação Pública conta com a vinculação financeira constitucional e previsão de percentual mínimo da arrecadação anual, que devem ser destinados exclusivamente ao financiamento da Educação Pública, que ocorre em diferentes patamares de obrigação mínima para o Governo Federal, estaduais e municipais[4].

Será mesmo que um caminhar estreito envolvendo a Educação Pública e os princípios militares poderá de alguma forma garantir níveis elevados de qualidade educacional?

Um cérebro aprendente

Durante o período escolar as crianças e adolescentes estão passando por um processo de amadurecimento cerebral, que definirá o tipo de adulto que se tornarão no futuro. Funções cerebrais como memória, controle inibitório e flexibilidade cognitiva, estão sedentas de estímulos corretos para se consolidarem adequadamente, em conjunto com a capacidade de planejamento, raciocínio e resolução de problemas. Para que se desenvolvam de modo pleno, em tempo e de forma robusta, é preciso estimular nas crianças e jovens o pensamento crítico, a convivência com o diferente, a curiosidade humana e a livre manifestação cultural, de opiniões e percepções diversas. Tais condições só estão presentes em uma escola que adote práticas pedagógicas democráticas e não fluem em um ambiente de disciplina e regras rígidas. Qualquer intervenção no ambiente pedagógico que decomponha o desenvolvimento mental próprio dessa fase de amadurecimento cerebral, poderá resultar em estragos irreversíveis. A principal área cerebral responsável pela orquestração mental denominada de córtex pré-frontal[5], que em média demora vinte e cinco (25) anos para seu total amadurecimento e tem seu pico de estimulação na idade escolar, poderá, se considerarmos uma educação restrita, rígida e repleta de regras punitivas, se transformar em um córtex pré-frontal amedrontado, violento e arredio. Será que devemos correr esse risco?

Como chegamos a esse ponto?

O Estado de São Paulo a partir do ano de 2008 trabalha na Educação Pública básica a ideia de um currículo escolar amplo, baseado em determinadas habilidades e competências para a formação de sujeitos críticos e aptos a viverem em uma sociedade em mudança[6]. No início, durante os primeiros anos da implantação curricular, muitas discussões ocorreram, formações pedagógicas e todo um cuidado para que a tão sonhada qualidade educacional, aferida todo final de ano letivo por índices educacionais detalhados, fosse alcançada. Na esteira dessa evolução pedagógica, chegamos ao ano de 2012 com as primeiras escolas de ensino integral, na tentativa de trabalhar o aluno de forma ampla e robusta.

Tudo aparentava sob controle, até a chegada em meados do ano de 2023 do chamado “material 100% digital” disponível para aplicação imediata em 5,3 mil escolas[7]. Nesse novo modelo, o Professor precisava apenas selecionar a aula desejada e logo em seguida recebia o pacote pronto, slides, textos e demais atividades para o aluno. No ano de 2024, o governo do Estado de São Paulo anunciou a adoção da Inteligência Artificial (IA) para a confecção desse material digital[8]. Nesse cenário, a perda do protagonismo do Professor se consolidou na Rede Pública de Educação do Estado de São Paulo. Ele não precisava mais gastar tempo e estudo profundo para o preparo das suas aulas, bastavam alguns cliques.

Paralela a essa realidade pedagógica, as escolas tiveram um agravamento nos índices de violência escolar, envolvendo alunos e profissionais escolares. Dados divulgados pelo Instituto Locomotiva em parceria com o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) no ano de 2023, mostraram que 1,1 milhão de estudantes da rede estadual de ensino de São Paulo foram vítimas de algum tipo de violência nas escolas e 1,6 milhão souberam de casos de violência[9].

Diante dessa combinação explosiva entre mutações líquidas pedagógicas e altos índices de violência escolar, professores e alunos não conseguiam mais identificar com clareza quais eram os seus verdadeiros papeis no processo de ensino aprendizagem. Um problema complexo de fundo social, pedagógico e humano se apresentava cada vez mais forte no interior da escola pública paulista.

Mas infelizmente, para alguns, um problema, por mais complexo que se apresente, sempre terá uma solução simples. Assim, a escola Cívico-Militar chegou, sem espaço e tempo para maiores reflexões, apenas chegou. A comunidade, aquela que sofre com a também complexa violência diária, acreditará talvez por um tempo, que terá uma solução simples para seu problema de natureza complexa.

É importante registrar que durante décadas a educação militar foi e ainda é ideal para formar militares, que precisam de disciplina e regras rígidas que garantam a sua sobrevivência no dia a dia de trabalho, pautado por um enfrentamento cotidiano da violência humana e das questões mais cruéis da vida em sociedade. Ela não é aconselhada para a formação acadêmica de crianças em plena fase de desenvolvimento cognitivo, atentas e curiosas ao comportamento dos adultos e se espelhando neles para construir o seu padrão mental do humano.

Palavras-chave: Educação. Escola Pública. Escola Cívico-Militar. Cérebro.


[1] Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?21/05/2024/de-autoria-do-executivo–alesp-aprova-criacao-de-escolas-civico-militares-na-rede-publica-de-ensino — Acesso em 22/05/2024

[2] Disponível em: https://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2019/09/25/educacao-militar-nao-e-indicada-para-a-formacao-de-criancas-diz-especialista/?loggedpaywall — Acesso em 23/05/2024.

[3] Disponível em: https://blogdacidadania.com.br/2019/09/para-educadora-educacao-militar-nao-e-indicada-para-criancas/ — Acesso em 11/03/2024.

[4] Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/areas-de-atuacao/eb/financiamento-da-educacao-basica/vinculacoes-constitucionais — Acesso em 22/05/2024.

[5] Disponível em: https://robertabocchi.com.br/o-que-sao-funcoes-executivas-e-como-elas-podem-melhorar-o-desempenho-das-aulas/ — Acesso em 11/03/2024

[6] Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/236.pdf — Acesso em 24/05/2024.

[7] Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/sala-futuro-educacao-de-sp-oferece-material-digital-inedito-para-professores-da-rede/ — Acesso em 24/05/2024.

[8] Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2024/04/21/inteligencia-artificial-para-formular-material-das-escolas-publicas-de-sp-veja-analise-de-especialistas.ghtml — Acesso em 27/05/2024.

[9] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2023-03/em-sp-69-dos-alunos-consideram-escolas-estaduais-ambientes-violentos — Acesso em 27/05/2024.

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