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O coach profeta no alto da montanha: religião e capitalismo

O coach profeta no alto da montanha: religião e capitalismo

Logo na primeira semana de 2022, o Corpo de Bombeiros precisou resgatar um grupo de mais de 30 pessoas em Piquete, interior do estado de São Paulo [1]. O grupo tentava subir o Pico dos Marins, um dos mais altos do estado, em circunstâncias adversas (muito vento e chuva), capitaneado pelo coach Pablo Marçal. A empreitada arriscada fazia parte do curso vendido pelo coach na internet por cerca de R$ 3 mil. Os participantes do grupo haviam comprado o curso.

Mas quem é Pablo Marçal? As primeiras notícias publicadas na tentativa de elucidar essa pergunta dizem, por exemplo, que ele “se apresenta como mentor e estrategista digital” [2], o que diz muito mais sobre como ele quer ser visto do que sobre quem ele é de verdade (por exemplo, qual sua formação, trajetória, realizações…). Ainda como forma de explicar “quem é Pablo Marçal”, um de seus feitos mais ressaltados nas primeiras notícias é o de que ele possui 2 milhões de seguidores no Instagram. E isso diz muito sobre a noção de sucesso e autoridade no mundo digital: muita gente faz sucesso porque faz sucesso, ou seja, o grande número de seguidores no mundo digital nem sempre é decorrência de realizações fora do mundo digital, mas torna-se uma realização por sí só, que garante certa autoridade ao seguido. Sim, isso é bastante redundante. Marçal, como “estrategista digital”, deve entender essa “lógica tautológica”.     

Foco, força e fé na meritocracia

“Pra acabar com a malandragem tem que prender e comer todos os otários”, como nos diz o músico Jorge ben Jor em uma de suas canções. E eu fico me perguntando quem é pior, se o coach que colocou pessoas em risco levando-as a um pico perigoso em meio ao mau tempo, ou se as 32 pessoas que tiveram ingenuidade suficiente para pagar ao sujeito, comprar o seu curso e segui-lo montanha acima. 

Não sei qual lado está mais errado, mas os coaches são profetas de uma espécie de religião de mercado que, assim como as religiões propriamente ditas, também tem seus mitos. A meritocracia, por exemplo, é um deles. Claro que esforço individual é muito importante, mas os coaches trabalham essa ideia de forma extremista, negando aspectos sociais e a importância da luta política. É como se tudo pudesse ser resolvido à base de individualismo. 

Em um país em crise, com oportunidades cada vez mais escassas e uma mobilidade social bastante difícil, aumenta o número de pessoas desesperadas e sucetíveis à pregação dos falsos profetas que apontam o caminho do paraíso. Esse paraíso não é mais pós-morte (pra que esperar tanto em um mundo tão imediatista?), mas sim a obtenção da riqueza material em vida terrena mesmo. 

Dicas de leitura

O caso do coach Pablo Marçal e sua expedição irresponsável na montanha me lembra uma obra importante para entendermos nossos tempos, que deixo como dica de leitura. Chama-se “Como a picaretagem conquistou o mundo” [3], do jornalista britânico Francis Wheen. O livro inteiro é fabuloso, mas há um capítulo em que Wheen analisa como o modus operandi religioso permeia o universo simbólico de coaches, pirâmides, auto-ajuda etc. Esse simbolismo é bastante claro em algumas palestras de coaches, que funcionam de forma idêntica a cultos. 

A propósito, a ideia de subir uma montanha em busca de desenvolvimento pessoal não é novidade e tem raizes na religião. Sempre há um profeta buscando alguma transcendência no alto da montanha ou alguma palavra divina a ser revelada lá em cima. Ao que tudo indica, de acordo com o simbolismo judaico-cristão, há uma certa dificuldade em se desenvolver espiritualmente no plano. Fica a dica a todos os moradores do Distrito Federal, principalmente de Brasília, que não têm muito onde subir. 

O fenômeno dos coaches é algo recente, mas vale lembrar que a relação entre religião e capitalismo é bem mais antiga. Então, para quem quiser ir mais a fundo, minha segunda dica de leitura é “A ética protestante e o espírito do capitalismo” [4], de Max Weber. No livro, o autor trata sobre como a reforma protestante, mais ainda a burguesia calvinista, possibilitou o desenvolvimento do capitalismo na Europa (e daí disseminado para o mundo) a partir do século 16, correlacionando a ideia de elevação espiritual com as ideias de lucro e investimento. O homem ético e escolhido por Deus passa a ser, na perspectiva protestante, aquele que lucra e reinveste o lucro no próprio trabalho (em vez de gastá-lo com prazeres mundanos) para gerar ainda mais lucro, em um círculo vicioso no qual “dinheiro chama dinheiro”. “A ética protestante e o espírito do capitalismo” é até hoje um dos livros seminais da sociologia moderna e Weber é considerado um de seus pais fundadores. A obra é uma das mais importantes das ciências humanas. 

Referências:

WEBER. Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

WHEEN, Francis. Como a picaretagem conquistou o mundo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

[1] https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2022/01/05/bombeiros-mobilizam-operacao-para-resgatar-turistas-no-pico-dos-marins.ghtml

[2] https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2022/01/08/quem-e-o-coach-que-colocou-32-pessoas-em-perigo-em-sp-e-cobra-quase-r-3-mil-por-curso-prefiro-que-voce-sofra-a-dor-do-desconforto.ghtml

[3] https://www.revistaamalgama.com.br/06/2009/como-a-picaretagem-conquistou-o-mundo/

[4] http://www.ldaceliaoliveira.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/18/1380/184/arquivos/File/materiais/2014/sociologia/A_Etica_Protestante_e_o_Espirito_do_Capitalismo_Max_Weber_-_Flavio_Pierucci.pdf

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