Há uma dimensão quase simbólica na forma como muitos negócios surgem. Antes de existirem escritórios, conselhos de administração ou ações em bolsa, há uma mesa de jantar, uma garagem ou uma cozinha. É ali, no espaço doméstico, que a ideia toma corpo e o trabalho familiar se transforma em atividade económica. As empresas familiares nascem, assim, deste equilíbrio entre afeto e ambição e constituem uma das manifestações mais autênticas da relação entre a economia e a vida. Longe de serem uma exceção, as empresas familiares são a espinha dorsal de grande parte da economia mundial. De acordo com a Comissão Europeia (2024), mais de 60% de todas as empresas da União Europeia são familiares e geram cerca de metade do emprego no sector privado (European Family Businesses, s.d.). Em Portugal, estudos da Católica Lisbon School of Business and Economics (2024) indicam que entre 70% e 80% das empresas nacionais têm base familiar, sendo responsáveis por aproximadamente 65% do PIB e 50% do emprego privado. O Compete2030 (2024) reforça esta tendência, assinalando que três em cada quatro empresas portuguesas são familiares. Estes números mostram que o fenómeno não é marginal, mas sim estrutural — económica e culturalmente.
Contudo, em Portugal, as empresas familiares são muitas vezes associadas à ideia de atraso, rigidez e resistência à mudança. Há quem as veja como negócios fechados, dominados por dinâmicas pessoais e pouco abertos à inovação. Mas esta imagem está desatualizada. A experiência demonstra que o carácter familiar pode ser precisamente a fonte de transformação: um terreno fértil para inovação, agilidade e confiança. A proximidade entre quem decide e quem executa permite respostas rápidas e decisões mais humanas; a lealdade e o compromisso garantem resiliência em tempos de incerteza. O desafio não é ser familiar — é saber equilibrar o afeto com a estrutura, a tradição com a visão. Chrisman, Chua e Sharma (2005) defendem que as empresas familiares não são um subtipo inferior de organização, mas antes uma forma singular de empreendimento, com lógicas próprias de controlo, decisão e criação de valor. Estudos internacionais comprovam que muitas destas empresas apresentam níveis mais elevados de rentabilidade e resiliência do que as empresas não familiares, sobretudo em períodos de crise (Sirmon & Hitt, 2003; Yilmaz et al., 2024).
Uma das abordagens clássicas na análise destas organizações é a teoria da agência. Originalmente desenvolvida para explicar os conflitos de interesse entre quem detém a propriedade das empresas (os accionistas) e quem as gere (os administradores ou directores), esta teoria foi adaptada ao contexto familiar para compreender as tensões entre diferentes ramos da família, a gestão e os herdeiros (Jensen & Meckling, 1976). Nas empresas familiares, o chamado “problema de agência” assume contornos particulares: proprietários e gestores são frequentemente as mesmas pessoas, mas os conflitos surgem entre gerações com visões distintas do futuro. Quando o altruísmo familiar se mistura com a autoridade empresarial, as decisões tendem a ser menos racionais e mais emocionais.
Em contrapartida, a teoria da tutela responsável (stewardship theory) proposta por Davis, Schoorman e Donaldson (1997) defende que, nas empresas familiares, o comportamento dos administradores é orientado por um sentido de dever, lealdade e compromisso com o negócio, e não apenas por incentivos financeiros. A família atua como guardiã do legado, procurando preservar o nome, a reputação e a continuidade da empresa. Esta perspetiva ajuda a explicar por que razão tantas empresas familiares privilegiam o investimento de longo prazo, mesmo quando isso implica abdicar de ganhos imediatos. De facto, a orientação para o longo prazo constitui uma das suas maiores vantagens competitivas das empresas familiares (De Massis, Foss & Lazzarotti, 2018; Mandl, 2008).
Mais recentemente, a chamada teoria do capital socioemocional (socioemotional wealth theory), proposta por Berrone, Cruz e Gómez-Mejía (2012), veio reforçar esta visão, ao demonstrar que muitas das decisões nas empresas familiares são influenciadas por fatores não económicos — como a identidade, o controlo, a continuidade e o afeto. O capital socioemocional traduz o valor emocional que os membros da família atribuem à empresa, considerando-a não apenas uma fonte de rendimento, mas uma extensão da própria história familiar. Este conceito explica, por exemplo, a relutância em aceitar investidores externos ou em nomear administradores de fora da família. Preservar a autonomia e a ligação afetiva ao negócio é, muitas vezes, mais importante do que maximizar o lucro. No entanto, este mesmo apego pode tornar-se um obstáculo quando impede a profissionalização (Arregle, Hitt, Sirmon & Very, 2024).
Muitas vezes, o crescimento das empresas familiares não é travado pela falta de mercado, mas pela ausência de estrutura interna. Quando a hierarquia se confunde com o parentesco, o poder de decisão depende mais do apelido do que da função. A falta de estruturas organizacionais e de funções bem definidos gera incerteza, conflitos e decisões ineficazes. É mais difícil dar ordens a um irmão do que a um diretor financeiro, e mais natural corrigir um colaborador externo do que um primo. Essa dificuldade em separar a relação familiar da autoridade funcional é apontada por Gersick, Davis, Hampton e Lansberg (1997) como um dos principais fatores de bloqueio ao crescimento. A literatura demonstra, porém, que estas barreiras podem ser superadas através da profissionalização. Mandl (2008) sublinha que as empresas familiares de maior sucesso são as que conseguem formalizar a sua gestão sem comprometer o carácter familiar — isto é, as que introduzem estruturas de decisão e avaliação, mantendo ao mesmo tempo uma cultura de confiança e proximidade. Em Portugal, a KPMG (2024) constatou que as empresas familiares com planos de sucessão e políticas definidas revelam maiores níveis de sustentabilidade e crescimento. A sucessão continua a ser o momento mais crítico. Fernández Pérez e Lluch (2015) mostram que a transição geracional exige planeamento e sensibilidade. Muitos fundadores resistem a ceder o controlo, temendo perder a identidade do negócio, enquanto as novas gerações procuram modernizar, arriscando rupturas. Quando a sucessão é preparada com antecedência e apoiada por mecanismos formais, a continuidade é muito mais provável (Gersick et al., 1997; KPMG Portugal, 2024). A resiliência é uma das maiores forças das empresas familiares. Yilmaz, Duman e Yildiz (2024) identificam quatro pilares que sustentam esta capacidade: visão de longo prazo, coesão interna, redes de apoio e compromisso com o legado. Estes elementos explicam porque tantas resistem melhor às crises e mantêm competitividade ao longo de gerações. Durante a pandemia de COVID-19, as empresas familiares europeias sofreram menores quebras e despediram menos trabalhadores do que a média das restantes (KPMG & European Family Businesses, 2021).
Exemplos inspiradores não faltam, a italiana Ferrero, nascida de uma pequena pastelaria em Alba, transformou-se num gigante global sem abandonar a estrutura familiar. A Corticeira Amorim, a Jerónimo Martins ou a Delta Cafés, em Portugal, ilustram a mesma lógica: negócios que começaram em contexto familiar e se tornaram grupos internacionais, mantendo o nome e os valores originais. Estes casos provam que a dimensão familiar não é uma limitação, mas uma força quando acompanhada por organização, visão e capacidade de adaptação.
No fundo, as empresas familiares bem-sucedidas são as que conseguem articular identidade, estrutura e visão. Identidade, para preservar o propósito e o capital afetivo; estrutura, para garantir transparência e eficiência; e visão, para planear o futuro com ambição e flexibilidade. Quando estas dimensões se equilibram, o “lar” e o “mercado” deixam de ser mundos separados — tornam-se o mesmo projeto de continuidade. Transformar o lar em mercado não é uma metáfora sentimental, mas um ato de coragem e responsabilidade. A confiança, herança natural das famílias, é um valor económico poderoso — desde que acompanhada por regras, método e abertura ao mundo. As empresas familiares não são um vestígio do passado: são uma ponte viva entre tradição e inovação, emoção e eficiência, passado e futuro.
Referências
Arregle, J.-L., Hitt, M. A., Sirmon, D. G., & Very, P. (2024). Family business and international business: Breaking silos. Journal of Family Business Strategy, 15(1), 100–118.
Berrone, P., Cruz, C., & Gómez-Mejía, L. R. (2012). Socioemotional wealth in family firms: Theoretical dimensions, assessment approaches, and agenda for future research. Family Business Review, 25(3), 258–279.
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De Massis, A., Frattini, F., Kotlar, J., Petruzzelli, A. M., & Wright, M. (2016). Innovation through tradition: Lessons from innovative family businesses and directions for future research. Academy of Management Perspectives, 30(1), 93–116.
De Massis, A., Foss, N. J., & Lazzarotti, V. (2018). Developing family business theories: From the microfoundations of management to the microfoundations of family business. Family Business Review, 31(1), 6–26.
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Fernández Pérez, P., & Lluch, A. (2015). Familia y empresa familiar en Iberoamérica: Una visión de largo plazo. Fundación BBVA.
Gersick, K. E., Davis, J. A., Hampton, M. M., & Lansberg, I. (1997). Generation to generation: Life cycles of the family business. Boston: Harvard Business School Press.
Jensen, M. C., & Meckling, W. H. (1976). Theory of the firm: Managerial behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics, 3(4), 305–360.
KPMG & European Family Businesses. (2021). European family businesses fared better than other regions in COVID-19 response. Recuperado de https://kpmg.com
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Mandl, I. (2008). Overview of Family Business Relevant Issues. Brussels: European Commission.
Sirmon, D. G., & Hitt, M. A. (2003). Managing resources: Linking unique resources, management, and wealth creation in family firms. Entrepreneurship Theory and Practice, 27(4), 339–358.
Yilmaz, F., Duman, I., & Yildiz, S. (2024). Resilience in family businesses: A systematic literature review. Journal of Family Business Management, 14(2), 145–168.



